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quarta-feira, 10 de julho de 2013

Capítulo 30: A ARMADILHA DE HEFESTO

ARES(Ἄρης) e APHRODITE(Ἀφροδίτη). Por Hellstern.

O trono de Ares(Ἄρης) era feito de bronze, muito forte e feio. Tinha grandes relevos em forma de caveiras e uma almofada forrada de pele humana! Ares tinha maus modos, era ignorante e tinha muito mau gosto. Mesmo assim, Afrodite(Ἀφροδίτ) o achava maravilhoso. Seus símbolos eram um javali selvagem e uma lança ensanguentada. Ele tinha uma casa de campo no meio da mata virgem da Trácia.


Ares, o deus da guerra, foi de muitas formas um deus repelido, pois estava associado aos conflitos e ao derramamento de sangue, sendo que Zeus(Ζεύς) e Athena não nutriam simpatia alguma por ele, principalmente por causa de sua força bruta e falta de refinamento. As mulheres que ousavam rechaçar seu amor terminavam sendo violentadas brutalmente, pois Ares partia para a conquista amorosa como se marchasse para a guerra: confiando em sua força. 

Entretanto, Afrodite, a deusa do amor, ironicamente não pensava da mesma forma e, impressionada pela beleza e pelo vigor do jovem guerreiro, não conseguiu deixar de compará-lo com o marido, o deus-ferreiro Hefesto(Ἥφαιστος), doente e aleijado, e foi isso que fez com que procurasse pelo deus-guerreiro quando, sujo de sangue após uma de suas infindáveis batalhas, voltou ao Olimpo. 

Era uma noite sem lua e as tochas que iluminavam as amplas galerias do Olimpo estavam quase extintas. No chão de terra as passadas de Ares soaram, num ruído compassado e surdo, misturado com o tilintar do escudo batendo contra sua armadura.

Todos os deuses dormiam. Todos, menos Afrodite que, inquieta no leito vazio, levantou-se atraída pelos passos que se aproximavam e viu o deus da guerra que chegava de mais um combate. Ares parou ao vê-la surgir das sombras, linda e vestida apenas por finíssimos véus.

— Ainda acordada, deusa? — perguntou, procurando dar à voz uma amabilidade que não conhecia.

A luz trêmula das tochas mostrou um sorriso fugidio no rosto de Afrodite.

— Hipnos, o Sono, ainda não veio me visitar. E você, Ares, há quantas noites não repousa? Parece exausto!

Ele olhou-a, desconcertado. Pela primeira vez, alguém se preocupava com ele.

— Ora, gaguejou ele — como posso saber? Tenho lutado muito e nem reparo se é dia ou se é noite.

O olhar profundo da moça pousou no rosto bonito mas cansado do rapaz.

— Venha comigo — falou, puxando-o pela fria manga de metal que cobria seu braço forte. — Você está imundo e faminto. Vamos cuidar disto. Precisa se tratar melhor.

Ele a seguiu como uma criança obediente. No final da galeria, uma fonte despejava sua água cristalina numa grande bacia natural e escoava lentamente através das pedras, indo descer pela encosta do monte.

— Tire esta armadura suja e amassada. Como pode andar com todo este peso sobre seu corpo?

Ele obedeceu, desfazendo-se com relativa facilidade dos metais que o envolviam. Seu corpo musculoso não tinha nem um arranhão. A pele muito clara do rosto liso e jovem tornava-o parecido com um menino, mas os cabelos anelados e curtos repousavam sobre uma testa preocupada.

— Vamos, — disse — entre na água e lave-se decentemente.

E, com suas mãos pequenas e delicadas, ajudou-o a limpar do corpo a sujeira da guerra e o contato dos seus dedos macios fez com que relaxasse um pouco.

— Agora, vamos aos meus aposentos. Tenho uma boa manta que poderá usar para secar-se.

As gotas caíam do corpo forte do deus e sumiam, tragada pela terra do chão. 

Diante da entrada do quarto de Afrodite ele parou, constrangido.

— Que dirá Hefesto, seu marido? Com certeza, dorme.

Ela sacudiu a cabeça, numa calada negativa e com um convite no olhar.

— Ele está em sua forja, na cratera do vulcão. Costuma ficar lá durante muito tempo, trabalhando sem cessar.

Ares entrou no aposento pouco iluminado.

— Como pode ele afastar-se de tão bela esposa? — comentou, enquanto esfregava no corpo a manta macia.

Ela não respondeu. Apenas sorriu e aproximou-se mais, com o olhar brilhante de desejo. Segurou uma ponta da manta e friccionou-lhe as costas.

— Ele me quis por esposa, mais por capricho do que por amor.

Ares segurou com as mãos fortes o rosto pequeno e lindo da deusa. De repente, o clamor das batalhas calou-se em sua mente e o cheiro de sangue foi substituído pelo doce aroma dos cabelos de Afrodite. O amor foi chegando devagar e ocupando em seu coração o lugar do prazer dos combates. Nos braços dela, esqueceu-se da violência e das guerras e entregou-se totalmente à deusa do amor.

Daquela noite em diante, durante as ausências de Hefesto, Ares passou a se encontrar com Afrodite. Para obter seu amor, o deus da guerra, abandonou suas atitudes brutais. Aproximou-se lhe oferecendo seu corpo perfeito, como um desafio à capacidade amorosa da bela deusa. Disse-lhe palavras de afeto. Deu-lhe muitos presentes. Ares, sem o menor escrúpulo com relação à ausência do marido de Afrodite, maculou o leito matrimonial do casal. Enquanto Hefesto trabalhava sem descanso em sua forja, durante a noite, ora em Lemos, ora no Etna, Ares visitava clandestinamente a sensual amante.

Sentiam-se felizes. Mas um só problema podia atrapalhar os amantes: Hélios(Ἥλιος), uma divindade que adorava revelar os casos mais secretos. Com medo de serem vistos pelo deus do Sol, Ares chamou um sentinela, um rapaz chamado Alectrión(ἀλεκτρυών), seu confidente, e determinou que guardasse a porta dos aposentos de Afrodite e que os avisasse logo que a carruagem de fogo apontasse no horizonte.

— Assim estaremos seguros — disse Ares. — Hélios é a luz que tudo vê e tudo revela. Não podemos nos arriscar.

E assim, enquanto Hefesto trabalhava em sua forja, as guerras perdiam seu calor impetuoso e o amor substituía o prazer das conquistas sangrentas no coração do deus da guerra.

Uma noite, o fiel guardião Alectrión estava cansado de tantas noites em claro. Durante o dia, mal conseguia repousar alguns minutos, pois seu pai, que não sabia de sua tarefa noturna, não o deixava atrasar seus serviços.

Enquanto isso nos aposentos os amantes trocavam carícias.

— E o que dizem os deuses? — perguntou Ares, entre um beijo e outro.

— Eles estão surpresos com sua ausência das guerras. E, como não sabem o motivo de seu aparente descaso pelas lutas, acham que as batalhas não o atraem tanto como antes.

Ares deu uma risada.

— E que melhor batalha pode haver do que esta que travamos, todas as noites na perfumada arena de seu leito?

Ela mergulhou os dedos em seus cabelos anelados e fechou os olhos, sentindo o desejo de Ares crescer novamente e procurar abrigo em seu corpo.

Alectrión, vitimado pelo deus Hipnos(Ὕπνος), não conseguiu mais afastar o sono e sua cabeça pesou sobre o peito. O dia amanheceu, claro e formoso. Alectrión não viu nem passar Éos, a Aurora, com seus dedos rosados abriram as pesadas cortinas da noite anunciando o novo dia. Hélios então saiu em sua carruagem de fogo. O primeiro raio de sol iluminou o Olimpo, entrou pela janela dos aposentos de Afrodite e viu os amantes distraídos no ato do amor.

Hélios, indignado pela traição ao deus amigo, foi em busca de Hefesto e lhe contou o que havia visto. O deus ferreiro, descobrindo o adultério, pois a luz inevitavelmente revela tudo o que se esconde nas sombras, deixou cair o ferro que forjava. Sentiu as forças diminuírem. Agradeceu ao amigo e, sentindo-se envergonhado e humilhado, recolheu-se à solidão.

Depois de muito refletir, planejou sua vingança. Rapidamente, o divino ourives teceu uma tela de ouro, muito fina, quase invisível, tal qual a teia da aranha, mas muito forte, que nem mesmo um deus poderia rompê-la, tomou por empréstimo as sandálias aladas de Hermes(Ἑρμής) e chegou ao Olimpo.

Esperou que os amantes deixassem o leito e secretamente preparou sua armadilha. Pegou a rede e armou-a no leito manchado pela desonra, pendurando-a sobre o leito onde os amantes costumavam se encontrar. Ao terminar sua obra, foi ao encontro de Afrodite. Ocultando seu ódio e sua tristeza, dissimuladamente, sem mais explicações, foi despedir-se da esposa:

— Querida esposa, vou passar alguns dias em Lemos, minha ilha favorita. Tenho muito trabalho a fazer. Espero que não se aborreça.

— Oh, não, meu esposo! Eu fico muito feliz. Gostaria muito de acompanhar-lo, mas tenho os deveres de nosso lar. Não se apresse em voltar, pois tomarei conta de tudo sozinha, com muita dedicação. Esperarei ansiosa pelo seu regresso.

E seguiu para mais uma noite de trabalho.

Ares, ao cair da Noite, apenas viu distanciar-se Hefesto, correu para os aposentos de sua amante. Mal deparou com Afrodite, sem conseguir conter seu forte desejo, disse-lhe:

— Venha, querida, para o leito pois grande prazer é o amor... Hefesto está de viagem, segundo penso, a caminho de Lemos.

Deitaram-se felizes e se abraçaram para mais uma vez bem-sucedidos. Amaram-se muito. Depois dos prazeres do sexo, saciados e cansados, os dois adúlteros caíram no sono, despreocupados, já que tinham Alectrión como seu aliado. 

Mas Hefesto, secretamente, voltou um pouco mais cedo e expulsou Alectrión a pontapés. Em seguida, chamou todos os deuses para que servissem de testemunhas do adultério de sua esposa e Ares.

Hefesto  regressou, seguido dos demais deuses. Hélios surgiu no horizonte, estendendo seus longos braços à Terra. Ares e Afrodite, nus, acordaram, de repente, pela claridade que irritavam seus olhos, e viram-se emaranhados, presos numa rede quase invisível e indestrutível.

Parado no umbral da porta, Hefesto viu no leito que raramente partilhava com Afrodite, os corpos unidos e ouviu os suspiros profundos que o êxtase iminente arrancava dos lábios que se uniam num beijo final. Ainda assustados, tentaram se afastar um do outro, mas a forte aderência da teia de ouro não permitiu que modificassem a posição em que se encontravam.

Então Hefesto chamou:

— Pai Zeus e todos os demais deuses, vinde a ver uma cena ridícula e intolerável! Por eu ser coxo e desprovido de beleza, Afrodite me cobre continuamente de desonra e prefere o pernicioso Ares, o destruidor, que é belo e tem pernas direitas! Eu, porém, sou aleijado, cheio de defeitos. A culpa, todavia, não é minha, mas de meus pais, que nunca me deveriam ter gerado. Vinde ver este lamentável espetáculo: como dormiram um nos braços do outro em meu próprio leito. Mesmo que muito se amem, não creio que desejem ficar aí para sempre. Vão desejar sair, mas a armadilha que preparei os reterá, até que meu sogro, que é meu pai, decida me devolver todos os presentes que lhe dei pela sua imprudente filha. Tu és belíssima, Afrodite, mas não tens decência, pois não consegues dominar teus raptos passionais. Por isso, eu hei de desposar outra deusa mais digna, que certamente Zeus me concederá.

Todos os deuses foram chamados para testemunharem o adultério, os deuses acorreram, mas as deusas, por um senso de delicadeza, não foram presenciar tal cena. Apolo(Ἀπόλλων), cutucando Hermes, perguntou ironicamente em voz baixa:

— Tu não ias achar ruim estar no lugar de Ares, apesar da rede, não é mesmo?

— Não... não mesmo! Nem que fossem três vezes mais redes, e com todos os deuses olhando.

E os dois riram estrondosamente pois a situação era mais cômica do que grave. E eles se divertiram tanto, que suas gargalhadas foram ouvidas muito além do Olimpo.

Afrodite não gostou nenhum pouco da resposta de Hermes, encarou-o irada, mas manteve-se calada, pois já havia tido um caso com ele, inclusive um filho, que teve que ocultar.

Zeus estava tão enojado, que se recusou a devolver os dotes de casamento, ou a interferir. Poseidon,  que de vez em quando ia instalar-se no Olimpo, querendo ser útil diante dessa situação, fingiu simpatizar com Hefesto :

— Já que Zeus recusa ajuda, vou conseguir com que Ares, como preço de sua libertação, pague o equivalente aos dotes em questão.

Hefesto  coçou a barba e respondeu:

— Isso é muito bonito. Mas se Ares não pagar, tu vais ter de ficar em seu lugar sob a rede. Deves te comprometer.

— Não penso que Ares vá deixar de pagar. Mas se ele o fizer, estou disposto a pagar e me casar eu mesmo com Afrodite.

A deusa olhou o velho deus da cabeça aos pés, e não achou-o nada mal. Chegou a desejá-lo, mas acordou com os gracejos dos demais. Afrodite, toda nua, numa posição parcialmente humilhante, passava por ser alvo da cobiça de cada deus presente. Afinal, era a única deusa que ali se encontrava.

Hefesto  estava decidido mesmo não soltar os dois amantes, mas Apolo conseguiu convencê-lo através de um juramento: que Zeus lhe daria por esposa uma de suas filhas Cárites: Aglaia. Hefesto , contente com a esposa que teria, aceitou e libertou-os. 

Afrodite, envergonhada, se retirou para Cipros, no Oriente, e Ares foi se ocultar na Trácia, a fim de esquecer a humilhação, mergulhou novamente em suas sangrentas batalhas. Desta união nasceram Fobos(φόβος), o Medo; Deimos(Δεῖμος), o Pavor; e Harmonia(Ἁρμονία). Fobos e Deimos uniram-se logo ao pai em suas lutas mortais e trouxeram consigo o auxílio de sua tia Enio(Ἐνυώ), a Devastadora. Harmonia refugiou-se no Olimpo.

Ares, antes de partir, castigou o pobre Alectrión, que por seu descuido esqueceu-se de seu dever e havia provocado toda aquela situação. Ele metamorfoseado em galo e condenado a cantar, para sempre, todas as madrugadas, avisando a todos da chegada de um novo dia, sempre que o sol desponta no horizonte.

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