Outra Ninfa deu a Hermes(Ἑρμής) mais um filho, que nasceu à sombra dos loureiros e lá foi deixado para que fosse encontrado por pastores. Por este motivo, recebeu o nome de Daphnis(Δάφνις), em homenagem à ninfa Daphne.
Daphnis cresceu muito belo e amado. Seu irmão, Pã(Πᾶν), ensinou-lhe a tocar sua flauta maravilhosa, com que divertia as Ninfas, enquanto cuidava de seu rebanho. Uma delas, Liquê, conquistou seu coração.
— Vamos, jure, Daphnis, jure que me ama!
O rapaz sorriu e acariciou seus cabelos louros.
— Juro! Eu a amo muito, Liquê.
Ela aconchegou-se entre seus braços com ternura.
— Jure que jamais olhará para outra mulher — sussurrou ela.
Ele permaneceu calado, com os olhos parados no rebanho que pastava.
— Vamos, jure! — insistiu Liquê. — Jure pelo rio Estige(Στύξ)!!
— Juro! — afirmou Daphnis.
Ela afastou-se um pouco e olhou-o nos olhos.
— Pois bem, O Rio Estige, é o rio da imortalidade e fica no mundo inferior. Você sabe que um juramento pelo Estige é o voto mais sagrado que pode ser feito, ninguém nem mesmo os deuses podem quebrar uma promessa feita pelo rio. Pois se um dia quebrar seu juramento, eu o cegarei, tirarei para sempre sua visão, para que nunca mais possa olhar para outra mulher.
Os pastos foram se tornando escassos e Daphnis precisou afastar-se com seu rebanho. E um dia avistou um castelo, que se escondia além da última das montanhas. Cansado, pediu hospedagem por uma noite. A própria filha do rei o recebeu e o levou aos aposentos de hóspedes. O rapaz se lavou e se arrumou para o jantar. Surpreso, viu-se sozinho com a princesa, na mesa enorme.
— Meu pai está viajando — explicou ela. — Levará alguns meses fora.
Os criados serviram um vinho delicioso e inebriante. Com a vista turva, Daphnis viu a moça segurar sua mão, murmurando com paixão:
— Fique comigo, pastor. Faça-me companhia. Sinto-me só neste castelo tão grande!
Delicadamente, Daphnis retirou a mão e contou tudo sobre Liquê, seu único amor. Uma palidez mortal cobriu o rosto da moça.
— Então seu coração já pertence a uma Ninfa? — perguntou, procurando aparentar indiferença.
— Sim — disse ele, — e Liquê me aguarda. Deve estar mesmo bem preocupada com a minha demora.
Depois do jantar, Daphnis pediu licença e retirou-se para seu quarto. A filha do rei, no entanto, trancou-se em seus aposentos reais e, nas trevas da noite que mal começava, invocou as entidades infernais. Misturou diversas plantas e com elas fez uma bebida escura e mal-cheirosa. A esta mistura acrescentou o aroma das flores, o sabor das frutas e a cor do sol. Despejou-a num cálice de metal e levou-a ao quarto onde Daphnis
já dormia.
Ele acordou, sobressaltado, ao toque suave da mão da moça sobre seu braço.
— Perdoe-me se o desperto, mas a noite será muito fria e é preciso que tome esta bebida, que o aquecerá.
Agradecido, Daphnis bebeu o elixir encantado. Mal acabou de sorver o último gole, um desejo forte de amar tomou conta de seus sentidos. A imagem de Liquê apagou-se de sua mente e nada mais restou, a não ser a sensação de intenso prazer que o corpo quente da moça transmitia.
Amou-a durante toda a noite e, quando o dia surgiu, adormeceu, exausto. Quando acordou, a cabeça doía, o corpo pesava. Levantou-se com um gemido, sem conseguir coordenar os pensamentos. Ao escutar ruídos em seu quarto, a princesa entrou, com outro cálice na mão.
— Tome, meu amado. Isto o fará sentir-se muito bem.
Ele obedeceu e logo uma alegria intensa invadiu-lhe a alma.
— Como é bom estar aqui! — exclamou, aproximando-se da janela à procura de ar puro.
Lá fora, viu seu rebanho pastando.
— Que belos animais! São seus? — perguntou à moça.
— São de meu pai — mentiu ela.
— Engraçado — disse ele, apertando a cabeça com as mãos. — Não consigo me lembrar quem sou, nem de onde vim.
— E isto faz diferença? — perguntou ela, atraindo-o novamente para si.
Quando a noite chegou, ela veio com outra taça, mas Daphnis não quis tomar. Preocupada, insistiu.
— Não me sinto muito bem. Tomarei mais tarde. Deixe-me sentir sede e então irei me deliciar com esta bebida que, com tanto carinho, preparou para mim.
Deitaram-se e, no ardor da paixão, ele se esqueceu da bebida. Quando acordou, viu a princesa ainda adormecida a seu lado e, subitamente, a lembrança de Liquê voltou à sua mente. Pulou da cama, aflito.
— O que foi, amor? — perguntou ela, sonolenta.
— Você me enganou! Com suas bebidas encantadas, fez com que me esquecesse da minha amada Ninfa! Preciso voltar com urgência! Já me demorei demais em seus braços ardilosos.
E, apesar dos protestos da moça, juntou o rebanho e partiu.
Mas Liquê, ao vê-lo chegar, logo pressentiu o que acontecera. Olhou-o nos olhos.
— Você me traiu! — murmurou, raivosa. — Você me trocou pela primeira mulher que encontrou em suas caminhadas!
Daphnis quis se justificar, mas não conseguiu afastar os olhos do olhar incandescente da ninfa. Sentiu a vista queimar-se e tudo começou a escurecer. Em minutos estava cego. Vagou ao acaso durante vários dias, sem conseguir encontrar um caminho seguro em meio à escuridão que o cercava. Depois de muito caminhar, escorregou e caiu do alto de um rochedo sobre o vale coberto de ervas rasteiras.
E foi lá que Hermes o encontrou. Deixou que as Ninfas chorosas levassem seu corpo e, no local onde o filho tombara, fez correr uma fonte da águas puras...
Hermes levantou a cabeça e fitou nos deuses um olhar cheio de ódio.
— Ele foi enganado por uma humana! Ela o enfeitiçou com suas bebidas mágicas! Os deuses entreolharam-se, preocupados.
— Isto significa que os homens estão de posse de conhecimentos perigosos! — comentou Hera(Ἥρα).
— Aprenderam a arte da Magia! Isto não poderia ter acontecido!— resmungou Thêmis(Θέμις).
— Maldição! — esbravejou Zeus...
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