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domingo, 1 de dezembro de 2013

Capítulo 71: A OBSSESSÃO DE TEREUS E AS METAMORFOSES DE PROCNE E FILOMELA

Procne(Πρόκνη) e Filomela(Φιλομήλα). Por Orpheelin.

O povo de Atenas vivia em constantes conflitos com outros povos gregos. Eram comuns as guerras pelos limites da cidade, sempre fomentada por Ares(Ἄρης). Houve a questão de terras entre Pandion(Πανδίων) e seu vizinho Lábdacos(Λάβδακος), de Tebas, e Pandion teve que solicitar o auxílio de Tereus(Τηρεύς), filho de Ares. 


Lábdacos, cujo nome seu pai, o rei Polidoros(Πολύδωρος), deu-lhe tirando-o da letra lambda do alfabeto grego, tornava-se, então, o seu substituto no poder de Tebas.

Pandion, rei de Atenas, foi desafiado pelo senhor de Tebas, Lábdacos, que invadiu suas terras, e resolveu declarar guerra ao reino vizinho. Apesar de corajosa resistência, os atenienses tiveram que recuar para o interior de sua cidade e, nessa situação de emergência, Pandíon teve que enviar seus embaixadores a fim de conseguir reunir forças. Só conseguiu um aliado: Tereus, o agressivo rei trácio que instalara-se em Dáulis, no sopé do Párnassos. Era filho de Ares, deus da guerra. Porém, enquanto a ajuda não chegava, Pandion travava terrível batalha contra o inimigo vindo de Tebas.

Tereus atravessou o mar rapidamente e chegou ao reino da Ática. E sem perder tempo, comandou seus violentos guerreiros contra os inimigos de Tebas e expulsou-os.

Pandion, deslumbrado pelo poder de seu aliado, que chegava com seus trácios, dando-lhe a vitória, conseguindo empurrar os invasores de volta para Tebas, quis o rei que pertencesse à sua família e convidou Tereus e seu exército a se fazerem presentes numa grande festa em Atenas.

Tereus, filho do deus Áres, o senhor da Trácia, depois de ter auxiliado as forças de Pandíon contra Lábdacos, rei de Tebas, em pagamento, recebeu de seu aliado a mão de sua filha mais velha, Procne(Πρόκνη), em casamento, cuja cerimônia foi realizada por Butes(Βούτης), que exercia o 
sacerdócio no Templo de Atena.

Mas quem rondou o cortejo nupcial não foi Himeneus(Ὑμέναιος), o deus das noivas, nem Hera(Ἥρα), a deusa protetora do casamento, nem as belíssimas e alegres Cárites(Χάριτες). As terríveis Erínias(Ερινύες), agitavam lúgubres tochas que tinham sido roubadas de um funeral, e o bufo, ave de mau agouro, sentou-se no telhado da casa onde Tereus se casava com Procne. Sem desconfiar de nada, o jovem casal atravessou o mar alegremente. Agradeceram aos deuses e foram recebidos com júbilo pelos trácios.

Procne, em terra estranha, em Dáulis dos trácios, viveu feliz com seu marido por algum tempo. E quando Procne deu à luz um filho, Ítis, houve festas em toda a Trácia.

Cinco anos haviam-se passado desde o casamento, e Tereus logo se revelou um marido cruel, Procne, que freqüentemente se sentia só longe de sua terra amada, foi tomada de saudades de sua única irmã, Filómele. Afinal, a monotonia já ameaçava a vida do casal, cujo marido não via mais na esposa a mesma que conhecera há alguns anos. Havia tido um filho, Ítis,  e já não se mostrava tão bela quanto antes. Por isso, pode encontrar um pouco de sossego, pois Tereus, fascinado pela criança, passava horas a fio à beira do berço, em verdadeira adoração. Sentindo na pele todas as mudanças, e o profundo desprezo do marido, precisava de sua irmã para confortá-la.

— Procne, por que razão está tão triste?

— Ah, meu esposo, é por estar longe de minha irmã Filómele a quem tanto amo.

— Sim, assim que pudermos faremos uma visita a seu pai...

— Se você ainda me ama um pouco, deixe-me viajar para Atenas a fim de buscar minha irmã, ou vai buscá-la você mesmo. Prometa ao meu pai que logo a levará de volta, pois ele a ama muito e não vai querer ficar muito tempo longe dela.

Tereus pensou um pouco, esboçou um sorriso e lhe disse:

— Está bem, Procne, neste caso irei eu mesmo a Atenas pedir a teu pai para trazê-la., pois você não pode viajar com nosso filho pequeno.

Procne encheu-se de alegria, e foi ela mesma cuidar das provisões para o seu marido. Como não era viável que ela viajasse com seu filho pequeno, Tereus foi de navio a Atenas, ele mesmo, procurar Filómele, para levá-la consigo para a Trácia. 

Logo chegou ao porto de Pireus, onde seu sogro lhe deu as boas-vindas. Quando chegaram à cidade, Tereus comunicou ao rei o pedido de sua mulher e garantiu ao rei que zelaria pela rápida volta da filha. Ela então se apresentou, esplêndida, para cumprimentar seu cunhado e fazer mil perguntas sobre a irmã distante. Mas, quando Tereus avistou a linda donzela e cunhada, seu coração se viu acometido de uma paixão intempestiva e ele decidiu possuí-la a qualquer preço.

Enquanto essa paixão ilimitada se agitava em seu peito, ele falava dos desejos de sua mulher, que estava morrendo de saudades da irmã, não menos de seu pai. Embora estivesse tramando planos indignos, agia como se fosse um marido carinhoso, e Pandíon o elogiou por isso. Filómele também deixou-se embair e abraçou seu pai, suplicando-lhe que lhe desse o consentimento para fazer a viagem. Com o coração pesaroso, ele consentiu. Filómele agradeceu-lhe e os três entraram no palácio real para se refrescar com um vinho generoso e excelentes iguarias. Depois que o Sol se pôs no horizonte, os três se separaram para descansar.

Éos(Ἠώς) já reluzia na manhã seguinte. Ao despedir-se, o velho Pandíon apertou a mão do genro e, enquanto as lágrimas se derramavam sobre o seu rosto, disse:

— Meu caro genro, só porque todos vocês o desejam é que os confio minha querida filha. Suplico-o, em nome de seu casamento e de nosso parentesco, em nome dos deuses, que a proteja como um pai amoroso e a mande logo de volta!

Assim disse ele, beijando a filha. Em seguida lhes deu a mão, mandando as mais cordiais lembranças à outra filha e ao neto de apenas cinco anos de idade. As ondas murmuravam sob os remos, e com as velas infladas, o navio zarpou para o mar aberto.

Logo apareceram as cidades da Trácia. Os barqueiros levaram a nau a um porto seguro e desceram para terra firme. Fatigados da viagem, cada qual correu para a sua casa. Mas Tereus levou Filómele a uma choupana solitária, nas profundezas da floresta, onde trancou a assustada donzela; e quando ela, chorosa, perguntou por sua irmã, o traidor, ostentando falsa tristeza, contou-lhe que Procne morrera e que ele inventara a história do convite para poupar o velho rei Pandíon de semelhante dor. Disse que na verdade a trouxera para fazer dela sua esposa.

Não adiantou ela chorar nem gemer. E assim, com lágrimas amargas ela se sujeitou a Tereus, tornando-se sua. Mas não demorou muito para que voltasse à razão, e logo despertaram nela terríveis intuições e dúvidas assustadoras. E pensava:

— Por que Tereus me mantém aqui, longe de seu palácio, como uma prisioneira? Por que não me leva ao seu palácio para ser sua rainha?

Uma vez, quando ela ouvia a conversa de seus criados sem que eles a percebessem, descobriu que Procne estava viva! Seu casamento com Tereus era um crime e ela se tornara a rival de sua própria irmã, a quem imaginava morta. Então foi tomada de uma tristeza indescritível e de ódio mortal pelo traidor. Correu ao seu aposento, gritou-lhe na cara que descobrira toda a verdade e, amaldiçoando-o, jurou divulgar a todo mundo o terrível segredo, sua culpa e sua vergonha. Com isso ela despertou o ódio e ao mesmo tempo o temor de Tereus. Sob protesto Tereus a conduziu para ver a sua irmã.

Filomele, irmã caçula de Procne, mal saindo da infância, não chegava perto do bebê com medo de ser maltratada pelo cunhado, após tudo o que passou, a mesma nutria incontrolado pavor. Lembrava-se sempre das muitas vezes em que escutara atrás das portas as brigas terríveis de Tereus, e ouvira apavorada os gritos da irmã ao ser espancada sem piedade.

Mas a chegada de Ítis trouxera momentos de trégua na tensão diária em que viviam e, enquanto Tereus se esquecia do tempo contemplando o filho, a esposa procurava a irmã, que sempre a recebia com um abraço mudo e cheio de lágrimas.

— Não chore, Filomele! Eu estou aqui com você, minha irmãzinha querida!

— Tenho medo de Tereus, Procne. Ele é tão mau com você! Por que não se queixa a nosso pai?

— Não fale assim, criança! Pandion está velho e já sofreu muito por causa do nosso irmão Erecteu. Não quero lhe causar mais problemas ainda. Saberei suportar tudo, calada. E lembre-se de que Tereus agora só pensa no filho e não me aborrece tanto como antes.

Filomele olhou a irmã por entre as lágrimas.

— Não a aborrece? Você chama isso de aborrecer? Procne, ele a maltrata, ele bate tanto em você que às vezes tenho medo que a mate.

Procne apertou a menina contra o peito.

— Minha querida, não diga isso! E não chore tanto, ou ficará com o rosto inchado e feio. E você é tão linda!

Abraçaram-se em silêncio. O choro da criança, ao longe, fez com que elas se separassem, sobressaltadas.

— Preciso ir agora, Filomele. Tenho que amamentar o menino. Espero estar de volta em pouco tempo.

— Sabe, Procne, — disse Filomele, seguindo atrás da irmã — às vezes acho que não gosta de seu filho. Quase não o procura, a não ser para alimentá-lo.

Procne parou e olhou para a irmã com uma expressão esquisita no rosto. Depois disse baixinho:

— Talvez você tenha razão. Ele é tão parecido com Tereus...

E seguiu rápida, pelos corredores, em direção ao choro da criança. Filomele parou e se encostou na parede de pedra. A expressão do rosto de Procne dissera mais do que suas palavras. E naquele instante Filomele teve a certeza de que a irmã detestava o próprio filho.

— Céus! — murmurou Filomele — Ítis é apenas um bebê. Não tem culpa da maldade do pai! Pobre criança...

Passos firmes no corredor espantaram as divagações de sua mente. Tereus aproximava-se rapidamente. Parecia não vê-la. Filomele colou-se mais à parede, esperando que ele passasse, mas ele parou à sua frente. Olhou-a em silêncio durante alguns minutos e depois puxou-lhe o queixo para cima, fazendo com que a luz da pequena janela redonda incidisse em seu rosto muito branco.

— Você cresceu, menina — disse ele, com voz rouca — E está muito bonita.

Filomele escorregou para o lado, assustada. E fugiu, sentindo que Tereus a despia com o olhar. Fechou-se em seu quarto, ofegante. Não viu a noite chegar e nem conseguiu dormir. Pela manhã, Procne encontrou-a encolhida num canto do quarto, como um animalzinho amedrontado. Quando viu a irmã, tentou sorrir, mas as palavras não saíam de seus lábios.

— Mas o que houve, Filomele? Alguém a assustou?

Fez que não com a cabeça e levantou-se, cambaleando.

— Não foi nada, Procne — balbuciou, encontrando, enfim, a voz perdida — Apenas tive um pesadelo.

Naquele dia começou o inferno de Filomele. Onde quer que fosse, encontrava sempre o olhar guloso de Tereus ou escutava seus convites lascivos. Evitava ficar a sós e, quando não era possível encontrar uma companhia, escondia-se no alto da torre, local há muito esquecido por todos.

E foi lá que Tereus a encontrou. Chegou pisando de leve, pé ante pé, e agarrou-a à força, rapidamente, como quem surpreende um pássaro distraído. Filomele gritou, mas seu grito se misturou ao grasnado de um bando de patos selvagens que passava, em revoada. Debateu-se, mas seu corpo miúdo e leve como uma pena foi logo subjugado pela força de Tereus, que se deitou sobre ela no frio chão de pedras. Filomele cerrou os lábios para não gritar de dor e apertou os olhos para não ver o rosto vermelho e suado colado ao seu. E ficou soluçando baixinho, escutando Tereus arquejar com um touro bravo. E, quando ele se levantou, continuou deitada, chorando, toda encolhida.

— Vamos, menina, trate de se levantar! — disse Tereus, cutucando-a com a ponta do pé — Não foi tão ruim assim, foi? Garanto que até gostou e há de querer mais.

Filomele sentou-se e olhou-a com raiva.

— Vocé é um animal! — exclamou ela — Não pense que isto vai ficar assim! Não sou idiota como minha irmã! Vou contar tudo a meu pai e ele irá bani-lo de Atenas!

O rosto de Tereus ficou rígido como o de uma estátua. E, temendo ainda mais que ela revelasse o rapto, tomou uma decisão demoníaca. Queria estar certo de que ninguém descobriria o seu crime, mas não ousava assassinar a moça indefesa. E, depois de amarrar os braços da infeliz às costas, e lentamente retirou o facão da bainha e ergueu a lâmina como se fosse matá-la.

Ela esperava alegremente pelo golpe que daria fim aos seus sofrimentos, mas, no momento em que exclamava dolorosamente o nome de seu pai, ele agarrou sua língua e cortou-a ao meio,com a ponta do facão e a lâmina fria desapareceu entre os lábios pálidos, arrancando um grito de horror de sua garganta. 

— Você não vai falar nada com ninguém! — rosnou, empurrando-a com força contra o chão. 

Agora não precisava mais temer ser denunciado. Indiferente, como se nada tivesse acontecido, deitou-se novamente sobre ela.

— Vamos, fale agora, se for capaz!

A cabeça da moça tombou para o lado e de sua boca saiu um fluxo vermelho e pegajoso. Mas Tereus não se importou e continuou a resfolegar sobre o corpo inerte. Depois abandonou a infeliz aos seus criados mais fiéis, ordenando que a vigiassem rigorosamente. E, por sua vez, regressou ao palácio, para junto de Procne.

Procne procurou a irmã em todos os cantos do palácio. Mobilizou a criadagem que, durante o dia todo, revirou as matas próximas. A noite já estava chegando quando, enfim, um guarda encontrou-a e trouxe-a, ainda desmaida, em seus braços. Horrorizada, Procne aproximou-se da irmã. A boca aberta deixava ver um vazio escuro e do côto da língua, no fundo da garganta, escorria um fio de sangue que lhe tingia os dentes de vermelho. Procne não gritou nem desmaiou. Apertou o estômago com as mãos
contraídas de pavor, curvou-se sobre a irmã e vomitou.

Ninguém conseguiu descobrir como aquilo acontecera. Filomele, cruelmente emudecida, recuperou-se, mas, incapaz de denunciar o ato vergonhoso de que fora vítima, não tinha como dizer quem fora seu agressor.

Pandion envelhecia a cada dia que passava, consumido pela dor de ver a sua caçula definhar de tristeza e despejar em todos um olhar aflito, cheio de mudas queixas. Foi Procne quem teve a idéia de fazer com que a irmã se ocupasse com algum trabalho manual. Conseguiu um grande pedaço de tecido grosso, fio de linha tingidos de várias cores com o sumo de ervas e frutos, uma agulha de osso e, nas horas em que Tereus pasava junto com Ítis, ensinou Filomele a bordar.

À princípio, Filomele não se mostrou muito interessada, mas um dia seu rosto se iluminou. No tear que recebera, ela tecia com sinais de cor púrpura um tecido branco. As mãos, antes lentas e desajeitadas, começaram a se mover com agilidade sobre o tecido e as linhas coloridas foram formando desenhos que pareciam contar alguma história. E Procne viu surgir a torre do castelo. 

Depois, uma figura feminina, em movimentos de fuga, vestida com os trajes de Filomele e outra, masculina, com as vestes de Tereus. O próximo quadro mostrava a imagem do homem deitado sobre a moça e, a seguir, outro em que ele segurava uma enorme faca junto à boca da jovem.

Ao observar melhor os desenhos que continham, entendeu o que se passava e compreendeu a horrível natureza de Tereus. Procne gritou. E continuou explodindo em gritos abafados pela mão de Filomele, que comprimia seus lábios convulsivamente, pedindo silêncio com os olhos. Quando, enfim, se acalmou, abraçou Filomele com um carinho angustiado.

— Entendi tudo, Filomele. Fui uma estúpida em não ter compreendido desde o  início. — Sua dor era grande demais. Só lhe restava um pensamento: vingança, vingança terrível contra o criminoso. E adiou sua vingança para a noite das Festas Dionisíacas.

Aproximava-se a noite na qual as Bassares, as mulheres Bacantes da Trácia, tomadas de um entusiasmo selvagem, costumavam celebrar as festas ao deus Dionísios. A rainha, pela primeira vez, também correu para a floresta, com o tirso na mão, coroada de videiras, junto com a multidão de mulheres. Com uma dor furiosa em seu íntimo, fingiu estar tomada pelo delírio costumeiro.

E Filomele viu, nos olhos da irmã, o estranho brilho que a insanidade acende. Procne caminhou pé ante pé pelos corredores, até o quarto do filho. A ama, sentada ao lado berço, pousou em Procne os olhos embaçados de sono.

— Vá para seus aposentos e descanse um pouco — ordenou Procne. — Eu mesma cuidarei do menino. O senhor meu marido está fora e só chegará para o jantar e não tenho outra ocupação para esta tarde.

A ama agradeceu com trejeitos de cabeça e sumiu pela porta aberta. 

— Lágrimas não serão capazes de nos ajudar. Estou pronta para fazer qualquer coisa a fim de vingar esse crime hediondo.

Procne atraiu para si seu filho, Ítis, e, depois de observá-lo, se deu conta de como o menino se parecia com o pai:

— Ele é igual ao pai!

O pequeno então subiu ao seu colo, abraçou-a e lhe cobriu o rosto de beijos. Mas só por um momento o coração dela se deixou enternecer. Então, ela o arrastou consigo. Numa sede louca de vingança, pegou uma faca e enfiou-a no peito do próprio filho. Depois Procne enrolou o bebê nas cobertas, apertou-o contra o corpo e deslizou para a cozinha, sem fazer nenhum ruído.

Olhou em volta. Os cozinheiros já haviam terminado os serviços do almoço e sobre o fogão estava um caldeirão de ferro com um ensopado de carneiro, já pronto para o jantar. Despejou o caldeirão pela janela. Lá fora, os cães se reuniram e num instante devoraram a inesperada refeição. Acendeu o fogo, encheu de água o caldeirão e pegou o facão que, por instantes, refletiu na lâmina polida seu louco olhar.

Tereus que voltava de uma caçada chegou em casa faminto. Os criados trouxeram-lhe o jantar e ele nem se preocupou em perguntar pela esposa. E Tereus, após saborear deliciosa ceia, perguntou:

— Porque meu filho não está à mesa, ele que sempre me faz companhia?

E Procne respondeu com uma risada de desprezo:

— Ele não poderia estar mais perto de ti. Aí o tens, aí, nas tuas mãos.

E Filómele, saindo subitamente do esconderijo, lhe atirou a cabeça de Ítis, que foi rolando pela mesa, indo parar à frente do rei. Tereus havia comido a carne do próprio filho. Em seguida, atiraram-lhe ao prato as mãos do pequeno infeliz. O rei urrou como um animal ferido, com os olhos arregalados, quase saltando as órbitas, pregados no resto do ensopado no fundo do caldeirão.

— Procne! Filomele! O que fizeram com meu filho? — Tereus, não se contendo, levantou-se de um impulso, derrubou a mesa e com um grito feroz correu para estrangular as duas irmãs, mas conseguiram fugir. — Cadelas desgraçadas! Hei de alcançá-las nem que seja nos infernos!

Procurou durante dias e dias e, por fim, alcançou-as em Dáulis, na Fólcida, na estrada para Tebas.
Assustadas, vendo Tereus aproximar-se brandindo o enorme machado, as duas rezaram aos deuses, pedindo ajuda. E, do alto do Olimpo, Zeus escutou suas súplicas. Estendeu as mãos e, antes que o machado pudesse desferir seus golpes mortais, Procne havia se transformado numa andorinha, Filómele num rouxinol — que ainda hoje traz as marcas vermelhas no peito.
.
 Tereus tomou de um machado e saiu no encalço das irmãs, que correram como loucas até Dáulis,  Ali as encontrou e poderia ter acrescentado dois assassinatos às suas malfeitorias, mas os deuses, desejosos de pôr cobro a tão horrível família, transformaram Procne  Quanto a Tereus, este, refugiando-se em terras longínquas, de pesar, pôs fim à própria vida e, quase à beira da morte, ganhou cristas com forma de casco e sua boca em forma de lança; os deuses transformaram-no numa poupa, ave de rapina,o mocho, que passa a vida perseguindo a andorinha e o rouxinol. Já Ítis, com seus pedaços recolhidos, foi transformado em pintassilgo.

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