Social Icons

twitterfacebookgoogle pluslinkedinrss feedemail

Pages

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Capítulo 60: AS VIAGENS DE DIONÍSIO E O ENCONTRO COM OS PIRATAS DO MAR TIRRENOS

TIRRENOS (Τυρρηνοί ). Por Sketchboook.

Após o episódio na Trácia e pretendendo alcançar as regiões longínquas da Índia, Dionísio(Διονυσος) teve que enfrentar os caminhos mais difíceis. Em um carro puxado por panteras, conduziu sua comitiva pelo Eufrates passando sobre uma ponte de cordas que eles mesmos fizeram, trançadas com trepadeiras de videira e hera.



Após essa travessia perigosa e árdua, naquele lugar da Ásia Menor foi construída uma cidade, que o seu povo chamou de Zeugma, “lugar de travessia”. A cidade floresceu e se tornou uma das maiores da Antiguidade.

Em seguida, Dionísio e sua comitiva, rumo à Índia, alcançaram o rio Tigre, que separava-os de seu destino. Ali, encontraram um leão enviado pelo poderoso  Zeus(Ζεύς), que conduziu-os por lugar seguro ao outro lado da margem.

Depois de atravessar desertos áridos e rios perigosíssimos, Dionísio e seu séquito rumaram para o norte e chegaram num país montanhoso banhado pelos rios Óxos e Iaxartes: chegaram em Bactres. Foram recepcionados pelos seus habitantes. Em troca, Dionisos ofereceu-lhes vinho e ensinou-lhes a cultivar a terra e plantar videiras.

Finalmente chegaram à Índia, uma terra hostil onde guerreiros selvagens os esperavam para atacá-los, sob o comando do rei Deríades(Δεριαδης). Porém, logo que avistaram Dionisos e seu estranho exército, puseram-se a rir. Os Sátiros revoltaram-se e, furiosos, partiram para cima dos indianos, que horrorizados perceberam que não eram fracos, e tiveram que resistir com todas as suas forças.

Por três longos anos houveram muitas batalhas naquele país. Os indianos defendiam-se bravamente, eram muito obstinados. E os orgíacos guerreiros de Dionisos, então, com o auxílio de serpentes e touros selvagens, conseguiram por em retirada os bravos indianos. Foram derrotados parcialmente, mas não subjugados e ainda tinham antipatia aos estranhos costumes e rituais daquela comitiva.

Quando o rei Deríades, então, quis de novo atirar-se contra Dionisos, uns pâmpanos que brotavam da terra lhe enlaçaram subitamente os membros e lhe paralisaram os esforços; quando o exército do semideus se encontrava nas margens de um rio, este se transformou em vinho, a um sinal de Dionisos, e os indianos sedentos que pretendiam beber foram imediatamente tomados por um delírio desconhecido.

De súbito, todos os indianos acorreram em multidão às margens do rio de suave perfume. Um, firmando ambos os pés no limo, mergulhado até o umbigo nas vagas que o banham por toda parte, se mostra semi-inclinado, peito recurvado sobre a corrente, e dali sorve, no oco das mãos, a água que destila o mel. Outro, perto da embocadura, possuído de ardente sede, mergulha a longa barba nas ondas purpurinas, e, estendendo-se sobre o chão da margem, aspira profundamente o orvalho de Dionísio. Este, debruçado, aproxima-se da fonte tão vizinha, apoia os braços na areia úmida, e recebe nos lábios sedentos o fluxo do licor que mais sede ainda lhe dá. Os que só tem à mão o fundo do pote quebrado, retiram o vinho com uma concha. Grande número bebe na torrente vermelha, e enche as taças rústicas dos pastores dos campos.

Após assim sorverem o vinho à vontade, já sentiam os efeitos da embriaguês, viam as pedras duplicarem-se, e julgam que a água se escoa por dois lados; entretanto, o rio continua a murmurar no seu curso e a fazer ferver uma à outra as vagas da deliciosa bebida. Uma torrente de embriaguez inunda o inimigo e começavam a delirar e ter alucinações.

Este extermina a raça dos bois, como se estivesse ceifando a geração dos sátiros. Aquele persegue os bandos de veados de cabeças alongadas, e julga-os, em virtude da sua pele simetricamente manchada, o bando dos bacantes, enganado pelas nébridas elegantes com que elas se adornam. Um guerreiro, dando altos brados, agarra-se a uma árvore que ele golpeia de todos os lados, e, percebendo que os ramos ondulam movidos pelo vento, abate as pontas dos ramos mais tenros, e fende assim a folhagem de copado carvalho, julgando estar a cortar com o gládio a intacta cabeleira de Baco. Luta contra a folhagem e não contra os sátiros; e na sua alegria imbecil, conquista contra a sombra uma sombra de vitória.

Outros indianos, irresistivelmente transportados pelos vapores que entontecem o espírito, imitam com os gládios, as lanças e os capacetes, os júbilos guerreiros dos Coribantes, e na sua dança das armas batem em torno os escudos, enquanto lutavam contra a sua própria insanidade, ao passo que os demais entregavam-se ao efeito embriagador, bebendo com avidez e deixando-se dominar, levados pelos cantos da musas de Dionísio, e saltam como nos coros dos sátiros; outros se enternecem com o som do tamborim, e no seu gosto impelido ao delírio pelo sonoro ruído, atiram ao vento as aljavas inúteis, cantando e dançando feito o séquito animado de Dionisos

Então, aos poucos, tratados com bondade, foram sendo subjugados. Só então Dionisos e os seus conseguiram cativar os indianos e ensinaram-lhes a cultivar a terra, plantar videiras e fazer vinho. Dionisos quem levou os temperos para a Índia e ensinou a eles como usá-los. O ódio daquele povo transformou-se em amizade, e construíram altares para Dionisos, incluindo-o no rol de seus deuses.

Ao deixar as regiões da Índia, Dionisos e a comitiva seguiram ainda mais para o leste, beirando as regiões montanhosas do extremo-Oriente. Chegaram a um grande rio que corria para o mar, com as águas que giravam num redemoinho imenso. Em suas margens havia árvores altas, carregadas de frutos vermelhos. E os gênios correram para esticar seus braços e apanhá-los para experimentar, aqueles frutos que lhes eram estranhos mas pareciam muito saborosos. Mas Dionisos impediu-os e gritou:

— Não toquem nisso! Quem comer esses frutos terá dores terríveis e sofrerá até morrer!

Os Sátiros recuaram, mas logo estavam salivando diante de outro espetáculo: haviam visto, no outro lado da margem, mais frutos estranhos, diferentes dos que conheciam, e também foram impedidos de prosseguir:

— Daqueles frutos também não podemos comer, meus amigos, porque quem o fizer ficará mais jovem.

Silenos(Σειληνός), que considerava-se um estorvo devido a sua idade e sua ociosidade, animou-se em prosseguir.

— Não! Não fiquem tão animados para apanhá-los! Não fiquem contentes, pois quem come os frutos, rejuvenescerá, sem dúvida, mas sem cessar, até virar criança, depois um bebê, e por fim desaparecerá; e isto vale também para qualquer deus! Todos os sinais indicam a mesma coisa: chegamos ao fim do mundo e não podemos ir mais longe. Devemos retornar.

E, assim, voltaram pelo mesmo caminho, rumo ao oeste. Ao voltar em direção da Hélade, passou pelas regiões frias e montanhosas.  Dionisos e seu séquito voltaram à Europa pela Frígia. Por onde passavam, ensinaram as pessoas a cultivarem videiras.

Dionisos, evitando transpor os Jardins das Hespérides, temendo a ira de Héra, deixou-os de lado e seguiu rumo ao Oceano, em cujas praias ele e seu séquito construíram barcos e adentraram-se rumo ao alto-mar. E, em poucas horas, já perdiam as costas africanas de vista. Destino: o desconhecido.

Guiados pela força dos Ventos, navegaram durante dias seguidos, buscando alcançar um novo mundo que lhes indicara o gigante Átlas. Cruzaram o Oceano e nada viam além do horizonte que se perdia e que pensavam nada encontrar senão o fim de tudo e de todas as terras e mares. Um grande abismo, talvez.

Mas avistaram terra, e ficaram impressionados com a beleza do que encontraram. Um continente perdido no meio do Oceano e dois reinos extremamente admiráveis. Um deles chamava-se Eusébia, onde viviam homens e mulheres muito belos, gente pacífica, de talhe agigantado, como os deuses do Olimpo. Suas cidades eram monstruosas, imponentes, com construções colossais. Era um povo organizado, tinham leis claras, pelas quais honravam, acima de tudo o amor e a bondade. Viviam fraternalmente, eram ajuizados e muito recatados. Ao contrário de seus vizinhos, do reino bélico de Máquimos, que já nasciam armados, obedeciam a uma convivência tranqüila e serena. Eram trabalhadores, sabiam arar a terra, a plantar hortaliças e frutos dos mais estranhos, conheciam as artes e as ciências, sabiam cantar e dançar, ao seu modo, eram poetas. Viviam como num Paraíso. Era um lugar que jamais homem ou imortal seria capaz de sonhar.

Dionísios, pretendendo saber por que eram tão desconhecidos do resto do mundo, perguntou:

— Nunca visitastes outras terras, no leste?

— Só fizemos essa viagem uma vez. Tínhamos ouvido que o país mais encantador e civilizado de vossas regiões era a terra dos Hiperbóreos, então decidimos visitá-lo. Construímos uma enorme frota, suficiente para transportar mais de um milhão de pessoas, e partimos. Mas, quando chegamos lá e comparamos o que eles tinham com o que tínhamos e o modo como viviam com o nosso, ficamos tão decepcionados que juramos nunca mais viajar para o leste, tão feios nos pareceram os lugares e tão má a forma de viver. Vimos e conhecemos, pela primeira vez, as guerras e a pobreza, a falta de conceito e a competição. Vimos o que não queríamos para nós, e resolvemos voltar.

Dionisos ficou envergonhado pela primeira vez em sua vida. Baixando a cabeça, resolveu retirar-se sem oferecer-lhes vinho, porque não lhes fazia falta. A um sinal seu, se retiraram e retornaram para o seu velho mundo através do Oceano.

Certa vez, Dionísio, vestido com seu manto púrpura, quis andar sozinho à beira-mar, apartando-se do seu séquito festivo. Depois de caminhar certa distância, sentou-se numa pedra para recobrar o fôlego e lá adormeceu. Neste ínterim havia se aproximado da costa um grande navio. Naquele navio estavam os temíveis piratas do mar Tirrenos, que eram o terror dos viajantes dos mares.

Os piratas, em número de vinte, viajavam a caminho de Delos, quando passaram por uma praia deserta e desconhecida. Um dos piratas, de nome Acetes(Ἀκοίτης), que era o timoneiro, saltou para a areia úmida e foi o primeiro a desembarcar. Cansado da viagem, foi esticar-se e descansar na praia para averiguar as condições do tempo para instruir os demais e prosseguir a viagem.

Enquanto no alto de uma montanha Acetes observava a direção dos Ventos, os demais marujos desceram à terra para buscar água, e quando estes pisaram nas areias claras deram de cara com o belo rapaz adormecido. Sua tez delicada, seus lábios rubros e o todo mais de sua aparência denunciavam que seria filho, ao menos, de um senhor poderoso do lugar. Quem sabe, até, do próprio rei.

— Vamos levá-lo conosco — disse o mais rude daqueles homens. — Poderemos pedir por ele um belo resgate.

Aproveitando no momento em que o viram em profundo sono, aproximaram-se silenciosamente e atiraram-se sobre ele, dominando-o e levando-o para bordo, no mesmo momento em que Acetes voltava a encontrá-los.

Entretanto, o timoneiro, tinha bom olho para as coisas divinas e percebeu logo que o garoto tinha algo de estranho. Dionisos parecia estar embriagado, ou então se fazia parecer. Cambaleava de sono e tinha dificuldade em acompanhá-los. E Acetes impediu-os e falou:

— Deixemos o rapaz em seu lugar e vamos embora de uma vez — disse ele — Que deus o acompanha, eu não sei, mas parece ele mesmo um deus. Seja quem for, que ele nos seja propício e peça pelo nosso trabalho, pois não pressagio nada de bom desta aventura.

— Virou Cassandra, agora? — disse Lícabas(Λυκαβας), o mais feroz e impiedoso dos piratas, com uma gargalhada assoprada que fez espirrar no rosto  do pobre timoneiro uma chuva de seus perdigotos podres. 

Acetes, conhecedor do estratagema do vilão, deixou para limpar depois o produto infecto da boca do asqueroso Lícabas, pois sabia perfeitamente — já vira, na verdade, por duas vezes acontecer o mesmo — que limpar o rosto diante dele era decretar a própria morte.

E dirigindo-se a a jovem falou:

— Perdoe esses homens que quiseram raptar-lo!

E um de seus companheiros retrucou:

— Eh! Que ideia é essa? Pare de levantar preces a um vadio!

— Vamos soltar esse jovem agora mesmo, pois ele parece um deus, não um homem qualquer. É melhor termos cuidado, porque talvez seja o poderoso Zeus, que brande os raios e os trovões, ou Apolo(Ἀπόλλων), cujas setas mortais nunca erram o alvo, ou até mesmo Poseidon(Ποσειδῶν), o Abalador da Terra que afunda qualquer navio cujo comandante menospreze seu poder.

Mas interrompeu-o Lícabas, o chefe dos piratas:

— Você deve estar louco, Acetes, se pensa que vamos libertar esse jovem só porque lhe dá medo. Olhe para ele! Podemos vendê-lo por uma fortuna em Cipros ou no Egito. Quem sabe não pertence a algum família importante da aristocracia e vale um resgate em ouro que nossos olhos jamais viram? Vamos, homens, levem-no para o navio!

Levaram-no à bordo e deixaram-no sonolento no chão. Em vão, Acetes tentou opor-se àquela atitude insana, e o mais jovem e forte dos tripulantes, um assassino foragido, agarrou-o pela garganta e atirou-o na água. Acetes quase se afogou, mas conseguiu agarrar-se às cordas da âncora.

Então, Dionisio começou a despertar e tomar consciência, e o capitão ordenou que seus marujos remassem em direção de Delos. Enquanto isso, Acetes subiu a bordo e ocupou o seu posto em silêncio e a tudo observando.

Estranhamente calmo, Dionísio só fazia observar docilmente aqueles homens sujos e cruéis. E perguntou, para testá-los:

— Por que fazem tanto barulho? Como foi que eu cheguei aqui? Para onde pretendem me levar?

— Não tema, garoto, diga a que porto quer ser levado, e nós o deixaremos lá.

— Muito bem, meu bom homem, então vamos para a ilha de Naxos, lá é o meu lar.

— Tudo bem, amigo. Ocupe o melhor lugar do navio.

Naxos, encontrava-se à direita do navio, e Acetes, satisfeito, moveu o leme para conduzir o navio para aquela direção. E o capitão quase o encheu de pancadas:

— Tolo, miserável! Que pensa que está fazendo? É louco?

— Mas você disse que...

— Cale-se, pois você está aqui para obedecer! Vire o navio para a esquerda! — disse uma voz ao seu lado. Era um dos piratas, que fora destacado pelo próprio Lícabas para vigiar o timoneiro.  — Dirija direito este troço!

— Mas... Ora, que outro assuma o comando do navio!

E Acetes afastou-se.

— Como se isto só dependesse de você! Ei, você! Assuma o comando! E quanto a você, Acetes, vai se arrepender. Toma um remo!

E assim deixaram Náxos à direita, tomando direção oposta. Como se só tivesse percebido o engano naquela hora, o jovem semideus fingiu estar desesperado, e suplicou:

— Marujos! Vocês prometeram que me levaríam a Naxos, mas esta não é a direção correta! Pretendem me enganar?

Enquanto isto, Lícabas, que fora se tomando cada vez mais de antipatia pelo jovem deus, e temendo que ele reagisse e pulasse ao mar, ordenou de repente a um de seus marujos:

— Amarrem esta mocinha! — disse, acentuando bem a  última palavra.

E antes que dessem cumprimento a sua nefanda ordem, aproximou bem a horrível carranca do rosto delicado de Dionísio.

— Frisou hoje cedo os lindos caracóis, menina loira? — disse o sórdido Lícabas, arreganhando a horrível dentadura, na qual se podiam perceber três dentes acavalados a  disputarem o mesmo espaço.

Em seguida, tomando sua faca, enrolou um dos cachos loiros sobre o fio da lâmina, como se fosse frisá-lo, mas os fios se partiram.

— Oh, que pena! Eu só ia fazer mais um cachinho...

Um jato de perdigotos explodiu da boca de Lícabas, como a onda esbatida que o vento impele, no inverno, sobre a costa pedregosa, mas curiosamente a baba nele não se alojou no rosto do jovem Dionísio, como se o capitão não tivesse cuspido nele.

Lícabas olhou-o com desprezo e vociferou:

— Onde está a corda, sardinhas regurgitadas pelo gato? — perguntou Lícabas, que mudava de espírito como o céu muda durante o verão abrasante.

E um boçal bem-mandado surgiu carregando um rolo áspero de cordas.

— Deixa ver — disse Lícabas, esfregando um pedaço sobre a parte interna do braço. — Não serve; traga outra!

Um rolo de fios de cobre espetado surgiu, nos braços do mesmo homem. Depois de testá-lo, o vil Lícabas aprovou.

— Amarrem-no, já!

Três homens fortes tomaram da corda e enrolaram Dionísio num abraço odioso. Quando, muito surpresos, miraculosamente, viram que tão logo terminavam de fazer os nós, eles se desmanchavam como por encanto, e a corda caía aos pés de todos, sem provocar o menor arranhão na vítima.

E o capitão vociferou:

— Imbecis! — disse Lícabas. — Que nó é esse que fizeram? Não viram que ele é forte? Por isso eu digo que pode valer uma fortuna. Vamos! Amarrem-no novamente, e tratem de fazer um nó decente ou mandarei dar um nó nas tripas de cada um de vocês! !

Os piratas obedeceram, menos Acetes, que permaneceu imóvel. Desta vez, foram feitos trinta nós na corda de fios de cobre. No entanto, Dionisio retesou um pouco os músculos, e e os mesmos trinta nós foram desfeitos, até que o sol caísse. Dionisio, que não pretendia identificar-se, limitou-se a olhá-los calmamente, com um sorriso irônico e enigmático nos lábios. E, subitamente, a embarcação parou no meio do mar, como se estivesse em terra seca. Parou, simplesmente. Ninguém sabia explicar o motivo.

—  O vento cessou de todo — explicou Acetes ao capitão, temendo uma reação brutal.

— Ora,  Então deem-nos remos! — ordenou Lícabas, que sabia dividir o instante das punições com o instante da ação.

Os remos foram lançados com estrídulo à água, mas na mesma hora viram-se enrolados por um emaranhado de algas. Em vão os marujos remavam. E os piratas começavam a se sentirem iludidos com aquelas promessas de riqueza, e esforçavam-se a mover o navio.

Então o timoneiro sobressaltou-se e insistiu para que o levassem de volta à praia o mais rápido possível. Mas o capitão interrompeu-o com um grito furioso:

—Eu já disse que não! Esta é uma grande oportunidade, e nós não vamos perdê-la! Não percebe que os próprios deuses o colocaram em nossas mãos? A Sorte está a nosso favor, covardes! Ficaremos ricos! Vamos, prendam-no com as correntes da âncora, e vamos ver se ele pode se soltar outra vez!

Não demorou muito para que as correntes, arrebentadas, fossem jogadas sobre o convés. Os piratas arregalaram os olhos, apavorados.

Ao mesmo tempo um fenômeno ainda maior aconteceu: videiras brotaram do meio do mar, como algas, emaranharam-se nos remos, enrolaram-se nos mastros, encheram-se de cachos de uva, e imediatamente o suco das uvas começou a jorrar e a correr pelo convés.

— Vejam, está chovendo! — disse um dos marinheiros, estendendo a mão.

Mas não era uma chuva normal, e sim uma chuva de vinho, que num instante cobriu todos de vermelho. Alguns, é verdade, gostaram da peça e abriam suas bocas  se deliciarem, entre gargalhadas, do produto da grande nuvem vermelha pairada acima do barco. Mas quando Lícabas, que não era um homem tolerante, enterrou uma espada dentro da garganta do primeiro, a brincadeira acabou-se ali.

Então, a hera cobriu os cordames de verde; guirlandas de flores envolveram todo o navio, e o ar ficou perfumado. O próprio prisioneiro ergueu-se, esplêndido, Dionísio, misteriosamente, tinha agora a cabeça coroada por uvas suculentas, brandindo em sua mão um grande tirso,  em cuja ponta havia uma pinha, como se fosse uma lança.

Como quem rege um concerto de flautas, Dionísio agitava o seu cetro, com um sorriso alegre estampado no rosto — o sorriso da embriaguez divina! 

O convés encheu-se, também, de animais silvícolas,  enormes e assustadores. Surgiram tigres, linces e panteras, que deitaram aos pés do jovem estranho, o que tomou os marinheiros de pavor.

— Verdadeiramente, este rapaz é um deus ou um demônio! — exclamou um deles. Em pânico, os piratas correram até o timoneiro.

— Para a praia, Acetes, senão morreremos!

De repente, o prisioneiro transformou-se num terrível leão e soltou um rugido que os fez gelar de medo. Mas era tarde demais. Dionisio, no corpo de um leão, saltou sobre um deles e estraçalhou-o.

— Por Poseidon! Ele é um demônio!

E os piratas lançaram-se ao mar para fugir da fera em forma de homem. Muitos outros o seguiram, mas tão logo alcançavam a água, viam seus corpos mudarem abruptamente para algo inumano.

E Lícabas, o último que relutava, ainda, em abandonar o barco, de repente começou a perder o equilíbrio.

— Mas o que é isso? Maldição! — disse, enquanto observava seus pés unindo-se por uma estranha membrana, quase transparente. Suas pernas também foram perdendo o pêlo espesso que as recobria e tornando-se lisas como a pele de um peixe.

Num último instante, antes de enlouquecer, o sórdido Lícabas chegou a achar graça daquela estranha metamorfose que se operava em si próprio.

— Estarei enlouquecendo, então? — exclamou, dando sua última gargalhada. Mas não foi de sua boca que saiu, desta vez, o infame jato, mas de uma protuberância instalada bem no alto de sua cabeça.  Lícabas, perdendo definitivamente o equilíbrio, saltou no mar e — à exceção do bom Acetes —  foi juntar-se aos seus homens, que eram agora golfinhos, que os ferozes tubarões perseguiam em alucinante disparada.

Dos vinte homens, somente Acetes ficou a bordo, paralisado, olhando para o leão. Mas o animal, além de não atacá-lo, transformou-se em homem outra vez, aproximou-se dele e disse, com um sorriso:

— Não temas, bom Acetes; gostei de você. Sou Dionísio, filho de Zeus. Sou o deus da alegria e dos prazeres! — disse o jovem, com os olhos refulgentes, ao timoneiro. — Leve-me de volta e instaure um templo, em meu nome, você se tornará o meu sacerdote e em todas as terras por onde andar, construa outros tantos para que se possam celebrar neles os meus sagrados ritos.

Acetes, meio confuso, sem saber o que fazer, pois não poderia levar o navio sem a força dos remos e de Ventos favoráveis, apenas tratou de obedecer, e o navio, miraculosamente, começou a mover-se rumo a Náxos, e os remos se moviam sozinhos, como se as videiras remassem.

Ao chegarem na ilha de Dionisio, este consagrou Acetes seu sacerdote, aos seus serviços, e ele passou a segui-lo em suas expedições. Após percorrer a Ásia, a Europa e a África e de procurar a cura na Frígia, junto de Rhea-Cíbele, Dionisio, que havia nascido em Tebas, na casa real de Cadmos, desejou que esta cidade fosse a primeira da Hélade a conhecer-lhe o culto.  Assim se fez, e então Dionísio partiu para Tebas com a finalidade de operar ainda muitos outros prodígios.

Após sua peregrinação Dionísio subiu ao Olimpo.E Zeus sorriu, feliz, vendo afinal seu filho e sucessor perto de si, participando de sua glória infinita...


Nenhum comentário:

Postar um comentário