IO(Ἰώ). Por Genzoman. |
Sêmele(Σεμέλη) tivera uma noite agitada. Em sonhos, uma criança segurava suas mãos, enquanto insistentemente a chamava de mãe. Ainda em sonhos, a jovem sacudia debilmente a cabeça, tentando explicar ao menino que jamais tivera filhos. Mas o menino insistia:
— "Mãe! Sou um deus, mãe! Preciso de sua ajuda para voltar ao mundo!"
E, quando despertou, o sol que se infiltrava pelas cortinas finas enchia seu quarto de uma luz quase irreal. Sêmele se levantou com a certeza íntima de que aquele seria um dia muito especial.
De repente, vindas de alguma lugar de sua memória, as histórias que seu pai Cadmos(Κάδμος), o rei de Tebas, lhe contava quando era pequena, chegaram à sua mente com um colorido muito vivo. E, de alguma forma, identificou-se com sua trisavó, Io(Ἰώ), que tivera para si o amor de Zeus(Ζεύς), o supremo senhor do Olimpo...
Io era filha de Ínacos(Ιναχος) e irmã de Foroneus(Φορωνεύς), Egiáleo(Αιγιαλέας) e Pelasgos(Πελασγοί). Ela exercia a função de sacerdotisa no Templo de Hera(Ἥρα) e tinha muitos pretendentes, entre os quais Lircos, filho de seu irmão Foroneus, que pretendia desposa-la. Mas ela vivia tranqüila junto do seu pai, o influente deus-rio. Nada parecia poder quebrar a sua paz, salvo que era muito bela.
No Olimpo, havia uma ninfa, Iynx(Ιυγξ), que era filha do deus Pã(Πᾶν) e da oréade Eco(Εχω). Ela, muito encrenqueira, resolveu suscitar o amor de Zeus por Io, fazendo-o beber uma poção do amor.
Amanhecia no Olimpo. Hera(Ἥρα), a rainha dos céus, acordara há pouco e percebera que estava só em seu leito. Zeus, seu esposo, já havia levantado.
— Por que terá levantado tão cedo? — perguntou-se Hera desconfiada.
Há vários dias o seu esposo vinha apresentando um comportamento estranho.
— Deve estar me preparando alguma... — pensou consigo mesma.
Abrindo as cortinas de seu maravilhoso quarto, a ciumenta deusa relanceou o olhar por sobre a cabeceira da cama e lá viu uma taça de prata. Ao aproximar o objeto de seu rosto, seu olfato imediatamente detectou os resquícios de uma poção conhecida.
Pressentindo que havia algo errado, percorreu com sua visão aguçada a vastidão do mundo, até fazê-lo recair, finalmente, sobre uma imensa nuvem escura que cobria a região que cercava o rio Haliácmon, na Grécia. Hera então esbravejou:
— Não pode ser, esta região possui um templo destinado a mim, Zeus não se atreva a me afrontar...
Já fazia algum tempo que no templo de Hera em Argos, muitas donzelas faziam seus votos a deusa e tornavam-se suas vestais. Entre elas estava Io, que era da família real, e muito cedo se tornou sacerdotisa de Hera, que a encarregou de acender o fogo sagrado, no início de cada ritual.
Logo Io se tornou a virgem vestal preferida de Hera... e de Zeus, que estava sob o efeito da poção cedida por Iynx. Nos ofícios do Templo, os movimentos graciosos da vestal cativaram a atenção do senhor do Olimpo.
Tal comportamento não passou despercebido a Hera, que começou a tratar a sacerdotisa com descaso e rispidez. Io, sem compreender a súbita mudança que ocorrera no comportamento da deusa, foi se queixar a Zeus.
— Zeus, senhor deus do Olimpo, não posso entender porque a deusa, a quem sirvo com amor e respeito, hoje me trata tão mal. Por mais que faça, não consigo descobrir como foi que a ofendi.
Zeus despejou na vestal um sorriso tranquilizador.
— Hera tem ciúmes de você, Io.
A moça se calou, muda de espanto. Depois, com muito custo, conseguiu balbuciar:
— Ciúmes de mim? Mas, por quê?
O beijo que Zeus pousou em seus lábios foi a mais eloquente das respostas. Assustada, Io correu. O senhor do Olimpo, então, decidido em se apossar de Io, foi atrás da moça proclamando:
— Donzela, feliz será aquele que vier a possui-la. Mas nenhum mortal é digno de ti, que bem merece ser a noiva do maior dos deuses!
Io correu, mas o deus foi por demais rápido, enquanto dizia:
— Não fuja de mim, princesa! O calor do meio-dia está ardente. Venha comigo, a sombra da mata nos convida. Por que se tortura no calor do dia? Não tema entrar na floresta. Vou protegê-la, eu, o deus que empunha o cetro dos Céus e que lança os raios sobre a Terra.
Io correu mais que em toda a sua existência e, certamente teria conseguido escapar se Zeus fosse mortal e não uma divindade. Io corria, amedrontada, quando percebeu que uma neblina muito espessa tomava forma e a rodeava, sombriamente. Por fim, não conseguia ver nada mais que brumas negras na sua frente. Com medo de cair em algum lugar perigoso, foi se esconder no silêncio do Templo. E foi lá que Zeus a encontrou, toda encolhida, escondida atrás do púlpito do capelão.
— Tem medo de mim ou do meu amor por você, Io? Se é a mim que teme, seus temores são infundados. Lembre-se que sou Zeus, o deus supremo, sou justiça e bondade. Se tem medo do amor, saiba que ele é a suprema integração entre o homem, a mulher e o universo. Só aquele que sabe amar pode um dia chegar a comungar com o Grande Espírito e absorver dele a essência da Criação.
Estendeu a mão e atraiu-a para si.
— Olhe nos meu olhos, Io. Se realmente não me quer, diga-me agora e não mais a importunarei.
O olhar de Zeus derreteu a resistência da vestal, desarticulou sua vontade e transformou seu medo num desejo incontido de amar. Apoiou-se no púlpito do capelão e recebeu o amor que Zeus lhe oferecia.
Enquanto isso, pela ausência da princesa, Lircos recebeu a ordem de ir procurá-la. Partiu com alguns companheiros e se pôs a correr o mundo. Não a encontraria em lugar algum e, com medo de retornar derrotado, partiria para a Cária, aonde haveria de desposar Hilébia, filha de seu tio Egiáleo.
Hera, observando o movimento de Árgos, sobre o desaparecimento de sua sacerdotisa, começou a desconfiar de Zeus seu esposo. Percebeu que a escuridão que envolvia a Terra se adensava cada vez mais.
— Se eu não estiver totalmente enganada, estou sendo novamente traída por meu marido!
Foi quando, virando-se para um lado, viu Iynx segurando o riso, o que lhe valeu a ira da rainha. Hera percebeu que a ninfa divertia-se com suas as poções e, num piscar de olhos, transformava-a numa pequena ave trepadora.
Impaciente e curiosa, Hera, que viu na impossibilidade de verificar o que ocorria em seu templo, devido a cortina espessa de nuvens que se abatia sobre o mesmo, percebeu que só podia ser obra de Zeus com o objetivo de impedi-laa de ver o que ocorria, resolveu descer até lá para ver o que se passava e imediatamente apressou-se em dissipar as nuvens. Em má hora porém, tomara esta decisão, pois abaixo desta grande nuvem escura estava seu marido, Zeus, fazendo amor com a ninfa Io, filha do rio.
Há vários dias que o deus adquirira o hábito de dar estas ligeiras escapadas até as margens daquele rio, para desfrutar dos prazeres da nova amante. Como temesse, porém, que a sua esposa viesse um dia a descobri-los, estendera sobre o céu daquela região um imenso tapete de nuvens negras.
De repente, sua bela amante, que estava deitada, percebeu que a nuvem se desfazia e que em meio a seus farrapos surgia a robusta e vingativa Hera.
— Zeus, sua esposa está chegando! — exclamou, assustada, a bela ninfa, procurando cobrir-se rapidamente.
Zeus, levantando a cabeça do peito nu de Io, voltou o olhar para o céu, enquanto passava a mão em seu manto. Imediatamente ergueu-se, com os cabelos ainda revoltos, e disse à bela amante:
— Não se assuste, Io querida, mas serei obrigado a metamorfoseá-la em algo, temporariamente...
E, sem esperar resposta, transformou-a numa novilha. No mesmo instante, Hera surgiu, pousando às margens do rio, logo avistou Zeus deitado ao lado de uma bela novilha branca.
— O que faz aqui, parado diante de meu templo? — perguntou a deusa, irritada.
— Eu? — gaguejou Zeus. — Bem, eu estava passeando por esta bela região quando vi pastando mansamente, às margens deste belo rio, esta encantadora novilha. Achei-a um belo animal e fiquei observando-a um pouco.
— Passeando... sei, próximo ao meu Templo? — perguntou a deusa, com escárnio.
— Sim — respondeu Zeus que percebeu que Hera o olhava com uma insistência inusitada.
Os olhos aguçados da deusa procuravam absorver todos os seus pensamentos. No mesmo instante, Zeus bloqueou a mente, evitando assim qualquer possível invasão telepática. Hera percebeu, mas não disse nada.
— Por acaso sabe por onde andam minhas vestais, percebo que meu templo não está sendo cuidado devidamente — esbravejou Hera — Por onde anda aquela energúmena da Io.
Hera procurou a sua sacerdotisa por todos os cantos, mas não a encontrou.
— Ela não pode ter sumido! — resmungava, olhando pelas galerias — Deve estar escondida por aí.
A novilha branca, solta nos jardins do Templo, continuava a pastar por ali, e logo a atenção da deusa voltou-se para a mesma. Observou-a de longe e um sorriso maldoso contorceu seus lábios finos. Hera já sabia: Zeus tinha o costume de transformar suas amantes em animais para despistar a esposa, a senhora não se deixaria enganar, e acercou-se de Io.
"Então é isso! Vamos agora ver quem é mais esperto!" — pensou a deusa.
Revestiu-se de doçura e foi ao encontro de Zeus.
— Veja Zeus — disse ela, toda meiga — como é realmente linda a novilha que deixaram nos jardins do meu Templo. Deve ser alguma doação anônima.
Zeus, procurando disfarçar sua ansiedade respondeu:
— Realmente, achei-a tão linda que fiquei observando-a um pouco e acabei por perder a noção do tempo.
Hera, fingindo acreditar nesta desculpa indigna de um deus, acercou-se da novilha, como se fascinada com a beleza do animal:
— É, de fato, uma bela novilha — disse, alisando o pelo sedoso e macio.
Estudou o animal durante um tempo, enquanto Zeus a observava, temeroso, fingia não estar interessado.
— Realmente magnífica — disse a deusa, por fim. — Diga-me: a quem pertence esta novilha, Zeus?
— Er... da Terra, eu acho. É, pertence à Terra, de fato.
Então, Hera, fingiu-se satisfeita com a resposta.
— Dê-me de presente. Vou levá-la para mim, querido Zeus!
Zeus assustou-se com aquele pedido; se lhe entregasse a novilha, perderia a sua amada, se a recusasse, despertaria suspeitas. Decidiu abdicar, por um momento, da donzela, entregando-a à esposa, mesmo que Hera pudesse fazer algum mal a ela. No entanto, ele poderia, mais tarde, recuperar a novilha e transformá-la de novo em sua amante, a bela Io.Viu-se então obrigado a conceder o animal a Hera.
— Vou consagrá-la a mim...
E assim, aparentemente satisfeita com o presente, foram embora, a novilha sendo puxada pelos cornos pela deusa, que parecia muito feliz com o presente. Tão logo chegaram ao Olimpo, Hera chamou o seu fiel criado Argos(Άργος), um gigante de cem olhos, que era filho de um tal Aréstor. Este gigante não era um ser malvado, mas um benfeitor que recentemente havia livrado as pessoas daquele país de um terrível sátiro que as escandalizava e um touro que devastava os campos e os rebanhos.Zeus esticou os olhos para a novilha branca que passeava pelos jardins.
— Pobre Io! — pensou ele — Argos é um guardião muito eficiente.
Hera chamou seu criado de modo imperioso:
— Argos, tenho uma tarefa para você.
— Pois não, rainha das deusas — disse a estranha criatura.
— Está vendo esta novilha? — perguntou Hera, apontando para Io disfarçada.
— Sim, poderosa Hera, meus cem olhos não poderiam deixar de admirar tão belo animal.
— Silêncio! — disse a deusa, com rispidez. — Quero apenas que a leve para um local afastado, mantendo-a sob a mais estrita vigilância.
Argos obedeceu, retirando-se logo em seguida juntamente com a infeliz novilha Io. A pobre ninfa derramava escondida grossas lágrimas de pesar, enquanto era carregada pelo horrendo criado para um vale deserto.
Uma vez ali, Argos soltou-a, sentando-se numa alta pedra, de onde podia observar toda a região. Assim, fosse dia ou noite, a atenta criatura jamais despregava sua multidão de olhos da infeliz Io. Nem para dormir o gigante deixava de vigiá-la, pois, quando estava com sono, apenas cinqüenta de seus olhos se fechavam, enquanto os demais cinqüenta vigiavam. E se alternavam. Desta maneira viveu Io durante muito tempo, lamentando a sua sorte:
— Jamais me livrarei da vigília deste maldito monstro— ponderava a pobre Io, enquanto arrancava do solo alguns tufos de grama, que engolia sem mastigar.
Sob os olhos de Árgos, Io poderia pastar, durante o dia, numa abundante pastagem, mas o gigante permanecia o tempo todo perto dela, vigiando. E, quando o Sol se punha, ele a trancafiava, atando-lhe o pescoço com pesadas correntes.
Ervas amargas e folhas de árvores eram o seu alimento, seu leito era o chão duro, sequer coberto de folhas, e ela bebia água de poças lamacentas. Io esquecia com freqüência que já não era um ser humano. Para suplicar piedade, queria estender os braços a Argos, mas então se lembrava de que já não tinha braços. Queria fazer-lhe súplicas tocantes, mas de sua boca apenas saíam mugidos assustadores.
Porém Argos não permanecia com ela sempre no mesmo local. Fazendo com que Io mudasse freqüentemente de lugar, Hera queria afastá-la do marido. E a intenção de Hera seria exatamente fazer com que Io se acostumasse dessa forma e fizesse parte naturalmente de algum rebanho para sempre. Por isso, seu vigia percorria as terras com ela, e foi assim que ela chegou a sua antiga cidade natal, às margens do rio onde, durante a sua infância, tantas vezes brincava.
Foi então que ela viu, pela primeira vez, sua imagem na água. Quando a cabeça do animal com chifres a olhou da água, ela recuou, horrorizada. Cheia de saudades, buscou aproximar-se de suas irmãs, que pastoreavam, e de seu pai, Ínacos, contudo eles não a reconheceram. Ínacos acariciou o belo animal, oferecendo-lhe folhas arrancadas de um arbusto. Agradecida, Io lambeu-lhe a mão, cobrindo-a de beijos e lágrimas. Mas o velho não tinha idéia de quem era aquela que ele acariciava e que também o acariciava.
A beleza da novilha logo atraiu multidões de humanos, mas Io não podia falar em sua forma de novilha, e portanto não conseguia ajuda. Um dia, apegado a ela, Ínacos veio visitar-lhe, mas nada ela pôde fazer. No entanto, Io, percebendo que seu pai aparecia freqüentemente para vê-la, aprendeu a escrever seu nome com uma das patas e o fez quando viu seu pai, chamando sua atenção. Ninguém entendeu, mas Ínacos sim. Nada pôde fazer, e chorou desconsolado o destino da filha. Passando o braço em volta do pescoço da bela novilha, exclamou em prantos:
— Pobre de mim! É assim que tenho que reencontra-la, depois de procurar por todas as terras? Ai de mim,estava sofrendo menos enquanto a procurava. Permanece calada? Não é capaz de me dizer nenhuma palavra de consolo, só consegues me responder com mugidos?
O povo ao seu redor o estava julgando um tolo, doente por confundir a novilha com sua própria filha, mas Argos percebeu que ele a tinha reconhecido, e resolveu tomar providências, enquanto ainda o desconsolado pai lamentava:
— Que tolo sou, pensava em como fazer para encontrar um marido digno, só pensava na tocha matrimonial e no himeneu. Porém agora você é parte de um rebanho...
Ínacos não pode ficar com ela, pois Árgos, observando o que se passava, puxou-a e levou-a para longe, ao cume de uma elevada montanha, e lá continuou a vigiá-la, desta vez mais de perto.
As desventuras de Io eram tantas, causaram tanta tristeza ao velho rei seu pai, que Ínacos tratou de vingar-se de Zeus, perseguindo-o com ultrajes e ameaças. Porém, o deus, como castigo a tamanha ousadia, enviou a terrível Tisífone(Τισιφόνη), uma das Erínias(Ερινύες), para atormentá-lo. E finalmente Ínacos, num acesso de loucura, se atirou ao rio Haliácmon, que a partir daquele momento mudou de nome para chamar-se Ínacos. E deixou a esposa, a oceânide Mélia, mais os filhos Foroneus, Egiáleo, Micena, Pelasgos, Cásos, Filódice e a desgraçada Io.
Enquanto os seres humanos passavam o tempo sob a guarda dos deuses, embriagados pelos ambientes paradisíacos daquela época, Io, a novilha de Hera, zelosamente era guardada pelos olhos atentos do gigante Argos, e, como seu pai, Io sofria. Mas seu sofrimento não havia sido, até então, em vão, pois Zeus, do alto do Olimpo, longe dos olhos de Hera, sua irmã e esposa, resolveu pôr fim ao sofrimento dos dois., então foi disfarçadamente até os estábulos do Olimpo para ponderar, fora da presença de sua esposa.
— Pobre Io! — pensou Zeus, novamente — Mas darei um jeito de trazê-la de volta. Impaciente, mandou chamar imediatamente o seu fiel Hermes(Ἑρμής).
— Tenho uma sigilosa missão para você — disse o deus dos deuses para o filho. — Quero que você descubra onde está a minha adorada Io e a traga de volta. Mas antes deverá dar cabo do gigante Argos, o gigante que a mantém prisioneira.
— Assim o farei — disse Hermes, o deus mensageiro, disposto a dar cumprimento às ordens apanhou seu cetro sonífero, o caduceu, capaz de fazer adormecer qualquer ser vivente, abandonou o palácio de seu pai e partiu imediatamente em sua missão. Em um instante Hermes percorria velozmente todos os vales e pastos do país, tentando descobrir onde estava o lugar que abrigava Io. Sobrevoava uma região pouco conhecida, distante, muito distante, e finalmente a encontrou.
No entanto, Hermes não sabia como proceder, até que Pã(Πᾶν), vendo-o aflito pela impossibilidade de decepcionar o pai surgiu com a inesperada solução. Entregou a Hermes sua flauta encantada e ensinou como usá-la.
O deus disfarçou-se de pastor, chamou cabras para junto de si, escondendo as asas num manto que o envolvia por inteiro e começou a tocar músicas celestiais com a flauta de Pã, com um ar distraído, o que logo chamou a atenção de Argos que chamou o deus disfarçado para junto de si para melhor ouvir e apreciar:
— Que instrumento maravilhoso é este? — perguntou Argos, tão logo percebeu a chegada do forasteiro. — Não tema, não farei mal algum. Seja bem-vindo. Venha descansar aqui perto de mim. Não há, em nenhuma parte, grama mais opulenta para o gado do que aqui, e vê que sombra agradável estas árvores oferecem! Aproxime-se, jovem pastor, e toque um pouco mais
Hermes lhe agradeceu, subiu o morro e sentou-se ao lado do vigia, que mantinha pelo menos uns cinqüenta olhos voltados na novilha.
— Lindo dia, não? — foi dizendo de modo jovial o pastor, fingindo não perceber a novilha, já que Argos permanecia com seus outros noventa e nove olhos postos sobre ela.
— Esta é minha flauta, e com ela procuro distrair o tédio durante minhas caminhadas — disse, chamando a atenção do segundo olho do monstro.
— É um instrumento diferente! — Impressionou-se o gigante
"Onde arrumarei mais noventa e oito novas distrações?", pensou Hermes. — Esta bela flauta que você está vendo foi criada pelo deus Pã — continuou a dizer o mensageiro de Zeus. — Existe, a propósito, uma lenda interessante que descreve a sua invenção.
— É mesmo? — disse Argos, que adorava lendas. — Desculpe-me a ignorância, mas não sou exatamente um pastor; sou um servidor da rainha Hera, que habita entre os deuses.
— Então você vai adorar esta história. É muito bela, na verdade! — acrescentou Hermes e em seguida começou a narrá-la, tornando-a aborrecida na tentativa de adormecer o monstro.
— A-ha... Deve ser uma bela história, amigo, mas tenho que tomar conta da novilha que a rainha dos deuses me...
— Espere, ouça outra história, a do grande deus Hermes, que inventou um novo instrumento com o casco de uma tartaruga. Essa história é fabulosa. Foi num tempo mais remoto.
E Hermes, disfarçado de pastor, contou a sua própria história, sobre o dia em que Zeus se apaixonou pela bela Mãe, sobre o seu extraordinário nascimento, as suas aventuras, sobre o dia em que roubou o rebanho de Apolo(Ἀπόλλων) e o escondeu para pô-lo em segurança, e sobre o instrumento que havia inventado. E, além dessa história, para distrair e adormecer o gigante, contou outras mais, já que conhecia muitas.
Mas já estava acabando seu repertório de histórias. Então, só restou-lhe tocar a sua flauta, até notar que os cem olhos de Argos começavam a piscar sonolentos. Mas Argos, temendo o ódio de sua senhora, caso ele deixasse de vigiar a prisioneira, lutava contra o Sono, e quando uma parte de seus olhos cochilava, ele se concentrava e permanecia desperto com a outra parte. Aos poucos, os olhos iam se fechando, se fechando... se fechando... se fechando... e finalmente dormia o filho de Aréstor.
O mensageiro de Zeus, então, baixou o tom de voz, tocou com o seu caduceu, uma depois da outra, as cem pálpebras fechadas, reforçando assim o entorpecimento, para não correr riscos, já que Argos era um gigante muito perigoso. E aí, aproveitando esse momento, não vacilou em triturar a sua cabeça com uma pedra e, depois puxando da sacola o seu Herpé, uma espécie de espada, aproximou-se da presa fácil e desceu a lâmina sobre o pescoço do pobre Argos, decepando sua cabeça, que rolou pelo chão com seus cem olhos, a mando de Zeus. Então, retirando Io daquele lugar maldito, disse-lhe:
— Pronto, agora já está livre!
Io fugiu e vagou pelo mundo em terras estranhas.
Héra, percebendo que algo não ia bem, foi verificar se seu vigia cumpria com as suas obrigações, e ficou furiosa ao ver a cabeça de Árgos inerte no campo enchendo-se de tristeza e, em homenagem ao gigante que bravamente a servira, recolheu os cem olhos do monstro, e estampou-os na cauda de seu pavão de estimação, homenageando desta forma o seu desastrado e infeliz servidor.
Mas ela, que não era mulher de lamentações, decidiu ainda se vingar da causadora daquela tragédia. Furiosa, esbravejou contra e deuses e homens, e começou a procurar Io por toda a parte para castigá-la.
Apesar de Hermes ter deixado Io em um lugar seguro, a determinação de Hera fora tão superior à esperada que ela acabou por encontrá-la. E, desejando maltratá-la aos poucos, enviou contra ela uma das Erínias para persegui-la.
A deusa dos castigos apresentou-se imediatamente.
— Va, quero que você atormente esta desgraçada, perseguindo-a até os confins da Terra! — ordenou Hera, tomada pela cólera.
E a Erínia, tomando a forma de um enxame de abelhas de tamanho anormal, saiu pelos ares em busca de Io, que ainda estava metamorfoseada numa novilha. Tão logo a avistou, voou até ela cobrindo-a de picadas. Assim, na primeira picada, a novilha pôs-se a correr em desespero.
Io, apavorada, disparou numa correria louca pelo mundo, levando sempre atrás de si o terrível enxame. A novilha fugiu para Dodona a fim de buscar a proteção de Zeus, mas este nada pode fazer, e Io, a toda pressa, empurrada pelas violentas picadas dos insetos molestadores, foi para o norte. Cruzou campos, rios e montanhas, e as abelhas continuavam a persegui-la.
Passou pelos limites da Hemônia até chegar no rio Istros, na Ilíria, atravessou a Trácia, até avistar e chegar na ponta mais oriental. Alcançou a Propôntida, onde teve seu primeiro rebento: uma filha, humana, mas nasceu com um corno de ouro na testa, o que lhe valeu o nome de Keroessa(Κερόεσσα).
Desesperada, novamente descoberta, Io, para escapar daquele terrível inseto, jogou-se no mar e nadou, nadou, nadou, até a exaustão. Mas a aura de Zeus a empurrava, e fê-la alcançar a outra margem do estreito, que passou a chamar-se de Bósforo, em sua homenagem. Ao chegar na outra margem, conseguiu uma trégua, e parou para descansar.
Em seguida, depois que Io fez nascer mais um filho que levava no ventre, voltou a ser violentamente atacada pelo enxame que a procurava, e Io abandonou o pequeno Tróquilos à própria Sorte e seguiu o leito do rio Hibristes, no país dos cimérios, até avistar ao longe os picos do majestoso Cáucaso.
Aí, o silêncio do deserto foi quebrado pelo profundo gemido que escapou do peito do titã acorrentado. Só depois que seus algozes foram embora que ele deixou transparecer a dor que sentia. De repente, Prometeu avistou uma formosa novilha branca aproximar-se.
— Mas o que estou vendo? É Io vindo nesta direção! Ela está longe de suspeitar que um de seus descendentes é que será o meu libertador!
Acabava de falar, e ouviu-se, lá embaixo, o mugido de uma novilha atormentada pela dor. Era Io quem fazia tanto barulho. Ela havia sido uma linda princesa de Argos, porém atualmente estava transformada em uma pobre novilha sofredora.
Com a boca coberta de espuma, toda arranhada e com manchas de sangue escorrendo, ela corria como louca na tentativa de escapar de um venenoso enxame de abelhas gigantes. Hera havia resolvido despejar contra a infeliz princesa toda a sua ira, por ter sido amante de seu marido Zeus. Io havia sido perseguida através de meio mundo e, agora, finalmente, chegava ao Cáucaso.
Assim que se aproximou de Prometeu acorrentado à rocha, ela parou de correr e, por alguns momentos, ficou muda observando o terrível espetáculo. Distraiu-se tanto que esqueceu-se das abelhas que lhe rodeavam, apenas espantava-as com a cauda. E pensou:
— O coitado deve ter cometido um crime horrível para ser torturado dessa maneira...! Eu que nada fiz, estou sofrendo perseguições de todo tipo!
Depois, lembrando-se das próprias dores e das abelhas que lhe incomodavam, desesperada, Io ergueu a cabeça e, com todas as forças que lhe restavam, suplicou:
— Senhor Zeus! Por que me deixa sofrer tanto assim? Por que não me fulminas logo com o seu raio reduzindo-me a cinzas? Por que a terra não se abre para me engolir? Por que não sou transformada em comida para os peixes em vez de ser obrigada a sofrer todas estas penas?
E o titã lhe falou:
— Ó filha de Ínacos, ou seja lá quem for sobre quem recai a injusta ira de Hera!
— Quem é você, pobre criatura? Como sabe o nome de meu pai e quem me castiga?
— Eu sou aquele que deu o fogo de presente aos homens, ou seja, roubei-o, se é isso que pensa. Imagina como quiser.
— Então, é Prometeu, o grande benfeitor da humanidade?...
— Por esse motivo é que estou cravado a esta rocha e acorrentado com grilhões indestrutíveis. Agora, você pode ver que existem sofrimentos piores que os seus. A paciência é o melhor remédio contra a dor.
— Se eu tivesse a sua força de vontade, conseguiria suportar este sofrimento e talvez até pior. Mas não consigo levar esta tortura adiante e tenho um único desejo no coração: cair morta agora mesmo!
— A força da qual diz que eu possuo, você também a conquistará quando acreditar que seus sofrimentos acabarão um dia e que sua existência no mundo tenha um grande propósito.
Io começou a chorar.
— Ó Prometeus! Você sabe tudo porque enxerga o futuro. Como é possível dizer que a minha vida tenha algum propósito?
— Ficará admirada com o que vou te dizer. Escute: é através de sua geração que espero o nascimento daquele que haverá de me libertar.
Ouvindo tais palavras, Io ficou ainda mais confusa. Ela jamais poderia imaginar que um dia ela teria um filho e que um de seus descendentes seria tão poderoso que conseguiria quebrar aquelas correntes feitas por um deus. Entretanto, a revelação do titã deu-lhe novas esperanças. Reconquistando a coragem, Io lhe falou:
— Se entendi direito, você sabe que algum dia meus tormentos terminarão, e voltarei a ser humana. Por favor, eu imploro: diga-me quando terminará este meu sofrimento!
— Na terra de Nilótis, onde o majestoso Nilo despeja-se no mar. Ainda demorará algum tempo, você terá muito a caminhar e sofrerá outras penas antes de chegar ao seu destino. Guarde-se dos Cães de Zeus, que não latem, os Grifos de agudo bico, e da hoste montada dos Arimaspes de um só olho... Deles não se acerque. Ao alcançares Nilótis, lá, porém, encontrarás Zeus, e ele novamente a transformará em mulher.
Io recebeu com alegria a notícia dada pelo titã.
— Muito obrigada, Prometeu! Haverei de conseguir a coragem da qual necessito! Porém, responda-me: o que quis dizer ao mencionar que seria através de minha descendência que você reconquistará a liberdade? Essa foi a razão pela qual suas palavras me deram esperanças, mas, mesmo assim, não as compreendi.
— Se quiser me ouvir, explicarei tudo. Em Nilótis, depois de haver readquirido sua forma de mulher, Zeus porá a mão em sua cabeça, e você terá um filho. Ele será chamado de Épafos(Ἔπᾰφος), por ser concebido através de um simples toque, e haverá de ser rei daquela terra. Os seus descendentes serão uma grande raça de heróis, e dessa fila de heróis um dia nascerá um tão poderoso que nem estas cadeias conseguirão resistir-lhe. Eu, porém, terei de esperar durante séculos, até que isso venha acontecer.
Terminando de fazer tal revelação, Prometes soltou um longo gemido de dor. Com isso, Io deu um salto, picado pelas abelhas, e reiniciou a corrida. Assim, em poucos minutos, a infeliz Io desapareceu na distância daquele solo forrado de pedras agudas.
Io corria pelas pernas de Hermes e a força de Zeus. Corria como ninguém, a caminho do Oriente, em direção das terras mais remotas, aonde ocidental algum imaginaria um dia chegar. Mas deu a volta, passou pelas regiões da Frígia, da Meônia, da futura Cilícia e da terra dos cananeus, através de terrenos montanhosos e desérticos, para alcançar o reino dos quemitas.
Exausta, de tanto correr e sofrer, conseguiu forças ainda e aproximar-se mais do seu destino definitivo, guiada por um espírito amigo, e foi ter nas fontes longínquas do rio Nilo, para além do país dos melâmpodes, talvez disposta a morrer sem esperanças. Nessa região tão fabulosa como desconhecida, por fim, encontrava o esperado e procurado duplo prêmio do descanso à sua martirizada fuga. Não aguentando mais de tanta dor, dobrou as patas, exaustas, e caiu no chão, enfraquecida pela fadiga.
Zeus, comovido, interveio em seu favor, e procurou Hera decidido a pedir perdão a ela, prometendo que jamais tornaria a procurar a bela Io, desde que a senhora do olimpo cessasse de atormentá-la e lhe devolvesse a sua antiga forma. Hera, muito satisfeita com a sua vingança, aceitou a proposta, contanto que Io nunca mais pudesse retornar ao seu país para rever seus pais e irmãos.
E assim se fez, e Zeus, descendo do Olimpo, aproximou-se de Io e tocou-lhe as costas: os pelos desapareceram do corpo do animal, enquanto seus chifres recuavam para dar lugar outra vez a seus negros e sedosos cabelos, os olhos se estreitaram, a boca encolheu, transformando-se em lábios, ombros reapareceram, e os cascos deram lugar aos pés e às mãos. Zeus desfez o encanto e deu a Io a sua forma natural, mas sentia-se feliz por ter conseguido plantar nela sua última semente, dando início às previsões de Prometeu.
Zeus, o senhor dos deuses, levou Io ao rei daquele povo, Telégonos que, por sua vez, a desposou e adotou seu filho, e o chamou Épafos e passaram a viver no seu novo país e reinou no Egito com o nome de Ísis, se tornando uma deusa muito venerada e, quando morreu, foi transformada em constelação...
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