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quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Capítulo 52: A TRAGÉDIA DE CALISTO E O BANQUETE MACABRO DE LICÁON

CALISTO(Καλλιστώ). Por Calisto-lynn.

Sêmele(Σεμέλη) suspirou, depois de relembrar o amor e o sofrimento de sua trisavó, a sacerdotisa Io(Ἰώ).

— Será que foi verdade mesmo? — pensou ela — Às vezes acho que são só lendas. Se nunca vi um deus, como posso acreditar que eles se aproximam de nós, como simples mortais?


Mas algo em seu íntimo fez com que se calasse. E veio de novo aquela impressão forte de que aquele dia seria muito importante em sua vida. Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos.

— Acho que fiquei muito impressionada com as histórias que papai me contava. Deuses, monstros, ninfas, Curetes... Papai contou uma vez que Hera(Ἥρα) encarregou os Curetes(Κουρῆτες) de matarem Épafos(Ἔπᾰφος), o filho de Io e Zeus(Ζεύς), mas eles o esconderam muito bem e ninguém pode encontrá-lo. Será mesmo?

Cadmos(Κάδμος), o pai de Sêmele, criara os filhos em meio a uma atmosfera mística. Segundo ele, os deuses sempre estiveram intimamente ligados à sua família. Ele lhe contara que após ser restaurada a condição humana por Zeus, Io isolava-se às vistas de Hera, que logo desconfiou que a mesma esperava um filho do senhor do Olimpo.

Por este motivo, ordenou aos demônios Curetes que se apoderassem da criatura tão depressa nascesse e a dessem cabo de sua vida. Os Curetes saíram-se bem na missão, raptaram o recém-nascido e o esconderam, tanto que Io não podia encontrá-lo. No entanto, tão atento para defender sua amada e seu filho, Zeus lançou uma rajada dos seus potentes raios e acabou com a ameaça dos Curetes.

A atribulada Io, guiada pela mão de Zeus, foi em busca de seu filho Épafos em Gebal, na Síria. A criança estava aos cuidados da rainha daquela terra. Io recuperou-a, levou-a de volta para a terra dos Quemitas e nela continuou cumprindo-se o destino, para fazer de seu filho príncipe em país estrangeiro.

Épafos, ao alcançar a maioridade, após a morte do Faraó seu padrasto, subiu ao trono, sob a regência de sua mãe, e passou a reinar sobre todos os Quemitas da terra de Nilótis. Tomando por esposa uma ninfa, Mênfis(Μέμφις), filha do deus-rio Nilo, fê-la rainha. Dessa união nasceram três filhas: Líbia(Λιβύη), Lisianassa(Λυσιάνασσα) e Tebe(Θήβη).

Neste meio tempo Bizas(Βύζας) nasceu da união entre Poseidon(Ποσειδῶν) e Keroessa(Κερόεσσα), filha de Io, portanto era sobrinho de Épafos, o rei de Nilótis. Nasceu na Trácia, não muito longe do Bósforos.

Poseidon ainda uniu-se a duas das três filhas de Épafos e Mênfis, Líbia e Lisianassa. À primeira, o Abalador da Terra deu-lhe um presente especial: um esplêndido vestido vermelho, de cauda, todo bordado com fios de ouro, estampado com cenas históricas dos deuses — confeccionado pelo seu sobrinho, o deus Hefesto(Ἥφαιστος); teve com ela dois filhos, Belos(Βῆλος) e Agenor(Ἀγήνωρ). E, com a segunda, um filho chamado de Busíris(Βούσιρις), este destinado a ocupar o trono do país, estabelecido pelo deus-rei Osíris.

As Licaias eram jogos muito famosos, instituídos pelo bom rei Licáon(Λυκάων), de Licosura. A cada dois anos, atletas e visitantes vinham de todas as partes, do norte e do sul, e eram recebidos com grande hospitalidade. Licáon chegava a pôr seu próprio palácio à disposição dos forasteiros. Naquele tempo, dava-se tanta importância à hospitalidade, cujas regras sagradas foram estabelecidas por Zeus, que as competições atléticas eram combinadas com um festival em homenagem a Zeus-Xênios, protetor dos estrangeiros.

Porém, desde aquele dia aziago em que Pandora abrira a ânfora proibida, Licosura havia esquecido o significado da hospitalidade. Ninguém mais tratava os forasteiros com amabilidade, e Licáon, outrora homem que mais honrava e cultuava Zeus, por causa disso insultou-o do modo mais ignominioso, justo por ocasião dos jogos que costumavam ser realizados em sua honra.

Atletas e visitantes de todas as regiões enchiam as ruas de Licosura, pois as Licaias deviam começar no dia seguinte. Todavia, ninguém estava disposto a recebê-los em casa, como antes, e assim os forasteiros andavam de um lado para outro como ovelhas desgarradas, sem lugar para dormir, a não ser as ruas e praças públicas.

Entre os visitantes estava Zeus, disfarçado de viajante pobre, que pretendia assistir de perto aos jogos e ao festival que seriam realizados em sua honra. Mas verificou que o povo da região dos pelasgos era de tal modo cruel e malévolo, a começar pelas maldades da família de Licáon.

O porte soberbo e a aparência majestosa do forasteiro deveriam ter bastado para Licáon perceber quem estava a sua frente. Mas, desinteressado e embrutecido, ele gritou enfurecido:

— Já estou farto de forasteiros! Por que não vai dormir nos bosques, em vez de sujar nossa cidade?

— As florestas são para os animais selvagens.

Ao som de suas palavras, a escada do palácio foi banhada por uma luz ofuscante. Diante daquele sinal, todos os presentes, exceto Licáon e seus filhos, souberam que aquele era Zeus e ajoelharam-se para adorá-lo. Mas Licáon replicou:

— Nós não adoramos forasteiros na terra de Pelasgos! Reverenciai vosso rei, não um forasteiro!

E um velho se destacou da multidão presente e disse com firmeza:

— É verdade, grande rei, não fazemos reverência a estrangeiros neste lugar. Mas antigamente os filhos de Pelasgos sempre cultuavam Zeus-Xênios e ofereciam hospitalidade a todos os forasteiros que passavam por nossos portões. Agora, nós os expulsamos, e eu temo que algum grande mal possa se abater sobre nós e nossa cidade. Receba esse homem, pois ele mostrou que não é um simples mortal, mas o próprio Zeus. Preste as homenagens devidas ao senhor do mundo!

Licáon não se convenceu, pois foi cegado pelo Orgulho. Vendo aquele estado de coisas, Zeus, já indignado com os diversos problemas que tinha que resolver no Olimpo, deu as costas para Licáon e sua família e voltou ao Olimpo para convocar os deuses para um conselho. Todos obedeceram à convocação e tomaram o caminho do palácio do Céu. Dirigindo-se à assembléia, Zeus expôs as terríveis condições que reinavam na Terra e encerrou as suas palavras:

— Então essa é a natureza da raça humana! Agora é bom que Prometeu os contemple e admire seus feitos, pois não deixarei um único deles sobre a Terra! Todos perecerão, culpados e inocentes. Eu os destruirei para toda a eternidade, e Prometeu, que tanto os ama, presenciará do alto do Cáucaso a punição que será dada à sua criação!

Mas Zeus se lembrou de que tinha uma parcela de culpa, enviando Pandora à Terra. E sentiu que precisava poupar algumas vidas, pessoas dignas e que lhe causavam satisfação. Para tanto, mandou seu filho Hermes para prevenir as famílias de sua preferência e indicar-lhes um lugar seguro.

Foi durante este tempo que ocorreu o grande dilúvio,  o rei Licáon e sua família foram poupados, pois conhecia a sua natureza e tinha-lhe grande consideração. Para tanto, deu-lhe uma grande oportunidade de se redimir e assumir uma nova posição e fazer parte de uma nova geração mais digna.

Nesta época, Zeus e Calisto(Καλλιστώ) se envolveram. Ela, uma das filhas do grande rei Licáon, era considerada, por muitos, uma deusa fluvial, que mantinha-se sempre acompanhada pelas Ninfas e por sua melhor amiga, a deusa Ártemis(Ἄρτεμις) pois pertencia ao seu cortejo e era a mais amada pela deusa, caçando a seu lado como líder das ninfas. A deusa, que amava a liberdade e jamais unia-se a qualquer deus ou homem, advertia Calisto e aconselhava-a a manter-se afastada do convívio de todos.

Todas as manhãs as duas embrenhavam-se mata adentro para caçar, com suas aljavas prateadas penduradas às costas. As outras Ninfas, contudo, sempre invejaram a preferência que a deusa dava a ela, uma mulher comum, que nem ao menos era de verdade uma delas.

Um dia, Zeus, o senhor do Olimpo, viu a bela Calisto a correr pela floresta e por ela se apaixonou. E, conhecedor das advertências de Ártemis, não podendo se aproximar da ninfa, sendo assim, a tarde, quando Calisto se deitava para descansar em uma clareira oculta, Zeus tomou a forma da própria Ártemis e aproximou-se da jovem para lhe perguntar sobre sua caçada.

Calisto saudou a suposta Ártemis dizendo-lhe que era maior que o próprio Zeus, que ficou muito satisfeito de ser preferido a ele mesmo e a beijou e abraçou enquanto ela lhe contava sobre a caçada até que ele, subitamente, voltou à forma masculina e a violentou.

Calisto correu de seu refúgio e Ártemis, que caçava com seu cortejo de virgens nas encostas do monte Mênalo, a viu e chamou. Calisto, pensando ser ela Zeus novamente disfarçado, recuou por um momento, até perceber o cortejo que garantia sua identidade.

Juntou-se a elas corada, calada, de cabeça baixa por ter violado seu voto de virgindade à deusa. Mas Ártemis, por sua própria falta de experiência no assunto, não percebeu o que havia acontecido até nove luas depois, quando as ninfas se despiram para se lavar em um regato e ela se escondeu, receosa. Então Ártemis, furiosa, a expulsou:

— Vá embora! Você não pode profanar nossas fontes sagradas — censurou Ártemis.

Do alto do Olimpo, a rainha Hera viu nascer uma criança no fundo de um bosque, Calisto dera luz a Arcas(Αρκάς). E a senhora do olimpo reconheceu na criança a infidelidade do marido Zeus.

— Vou acabar logo com sua beleza e fascínio! — Gritava furiosa com a possibilidade de que Calisto se vangloriasse de ter tido um filho com seu marido.

E, tendo Calisto retornado ao grupo de Ninfas, reconheceu-a e resolveu castiga-la. Apontando-lhe o dedo vingador deu inicio a sua metamorfose.

— Céus, o que está havendo comigo!

A pobre ninfa olhou, horrorizada, para os seus membros peludos, sentindo que sua própria boca aumentava de tamanho, enchendo-se de presas enormes. E pensou:

— Oh, se ao menos tivesse me transformado num felino!

E tentou dar alguns saltos ágeis, mas caiu por terra, com todo o seu peso. Seu espírito, contudo, permaneceu ileso. E, temendo pela vida de seu filhinho, foi procurá-lo, e não mais o encontrou. Antes que Hera pudesse fazer algum mal à criança, Zeus tomou-a e confiou-a a Maia(Μαῖα), filha do gigante Atlas(Ἄτλας) e mãe do deus Hermes(Ἑρμής).

A deusa criou o menino como seu. E quanto a Calisto, agora uma ursa, ficou a vagar pelos bosques pelásgicos, procurando manter-se afastada de seu filho. No entanto, não abandonou o seu lugar; andava pelos mesmos lugares em que antes caçava, olhando as Ninfas se divertirem no bosque de Ártemis, no entanto mantinha-se afastada dos caçadores e, ao mesmo tempo, de lobos, ursos e outros animais selvagens, por esquecer sua nova condição..

Às vezes Calisto vagava noites inteiras ao redor de sua casa, esperando ainda ver o seu filho desaparecido, ou mesmo para fugir da escuridão que assolava a floresta na noite apavorante e ruidosa. Mas ela agora não podia mais conviver no meio dos humanos, e seu espírito não admitia a possibilidade de ter de conviver com as embrutecidas feras selvagens.

Quinze anos se passaram e o menino crescera no território dos Pelasgos. Calisto, no entanto, tentava ao máximo lutar contra seu destino mantendo-se o mais ereta possível, tentando assim conquistar a piedade dos deuses. Mas a indiferença de Zeus a fazia crer ser este deus cruel, apesar de nada poder dizer, pois agora só sabia rugir.

Um dia, no entanto, em uma de suas caminhadas pelo bosque, reconheceu seu filho, Arcas, agora um homem, um caçador. Calisto, mesmo assim,  pôs-se de pé, admirada e muda quis abraçá-lo e, ao aproximar-se, provocou o medo do filho que, sem reconhecê-la, lhe ergueu a lança e, quando estava para deferir o golpe, Zeus, compadecido com o trágico acontecimento que estava por vir, não permitiu que a matasse e afastou os dois removendo sua mãe para os céus. Calisto transformou-se na Ursa Maior.

Hera, indignada com a glória conferida a Calisto, voou para Tétis e Oceano, queixando-se de que sua rival fora divinizada e sentada no Trono do Céu, sobre o próprio Eixo do Mundo, envergonhando-a a cada noite e incentivando outras rivais e pediu aos deuses do Oceano que ao menos proibissem Calisto de de mergulhar em suas águas: "que não deixem uma concubina banhar-se nessas águas pura". Tétis e Oceano a atenderam e, por isso, a Ursa Maior nunca se põe.

Apesar do triste incidente com sua filha, o rei Licáon, que obtivera graças diante das divindades do Olimpo, livre das desgraças da ira de Zeus sobre os povos da região do Párnassos e da Ápia, passou a freqüentemente hospedar os Imortais em sua casa, especialmente as Ninfas e os Gênios das florestas da região que reinava.

Mas Licáon, ao invés de mudar seu comportamento devido à ira de Zeus, considerou-se ainda mais importante e orgulhoso por ter sido poupado. Achava-se o rei mais importante e poderoso de todos os reinos. Dizia-se favorito de Zeus. E esnobava todos os visitantes que freqüentemente achegavam-se em seu reino para as festas Licaias, como era tradição anual. Licosura, após o Dilúvio, tornara-se um monte de ruínas, mas outras cidades surgiram ao seu redor, e Parrásia tornou-se a sede do reino dos Pelasgos.

Licáon duvidava da origem divina de seu neto Arcas. Para tanto, maliciosamente, a fim de experimentar sabedoria e clarividência dos deuses, resolveu convidá-los para um banquete especial, um dia antes das festas Licaias. O próprio Zeus foi convidado. Entre os convivas estava o deus Pã(Πᾶν), que era o mais venerado por aquelas partes. Talvez Licáon se sentisse invejoso, já que coincidentemente o pequeno Arcas levava fama de ser filho do senhor do Olimpo. E pretendia livrar-se do menino.

Por isso, serviu à mesa dos deuses o pequeno Arcas em pedaços, temperado e assado. Deméter(Δήμητρα), sempre a mais gulosa que os demais deuses, já havia devorado uma parte do ombro humano, quando Zeus deu pelo engano. Com um olhar fulminante, fez parar a ceia, antes que algum outro deus experimentasse o assado:

— Então este é Licáon, o mortal estimado pelo Olimpo?! Como ousas insultar o senhor do mundo de modo tão desonroso? Não aprendeste nada com o que se sucedeu à humanidade?

O espanto foi geral, causando a maior confusão. Cheio de cólera, Zeus virou a mesa, e os deuses, muito aborrecidos, abandonaram a casa do rei e recolheram os pedaços de Arcas. E o rei, amedrontado, foi esconder-se.

No Olimpo, Zeus fez ressuscitar o pequeno Arcas e, como estava sem uma parte do ombro, ordenou ao filho Hefestos que fizesse para ele um ombro de marfim. Em seguida, devolveu o menino à plêiade Maia, a mãe de Hermes, e pediu que lhe desse educação.

O pai dos deuses, ainda muito irado pelas atitudes grotescas dos humanos, golpeou com o raio a casa do rei, que foi totalmente destruída pelas chamas. O rei fugiu para o campo aberto. E o primeiro grito de dor que soltou foi um uivo.

Suas roupas transformaram-se em pelos espessos, seus braços tomaram formas de patas; havia se transformado em lobo. Assim, o rei do Olimpo pôs fim aos inúmeros crimes desse malfeitor, adepto dos sacrifícios humanos. E assim houve o surgimento da raça amaldiçoada dos lobisomens.

Em seguida, Zeus, ciente dos crimes que os filhos de Licáon cometiam também, começou por fulminar os Licaônidas, transformando-os todos em lobos, que passaram a infestar a região de um monte que, a partir de então, tomou o nome de Licaios. E, entre os cinquenta filhos varões de Licáon, somente Níctimos(Νύκτιμος), o mais novo, foi poupado, já que era vítima constante do abuso de seus irmãos.

De volta ao Olimpo, o rei dos deuses, desgostoso com a espécie humana, quis enviar contra eles um novo dilúvio e exterminá-la de uma vez por todas, mas lembrou-se do pacto que fizera e resolveu, com isso, iniciar um longo processo de nascimentos, os heróis, para que tivessem um papel fundamental entre os homens, para civilizá-los, orientá-los e protegê-los contra a vilania e as mais diversas formas de violência. E muitos deles haveriam de nascer do próprio ícor de Zeus, seu sangue sagrado.

Então, Níctimos, o único entre os filhos de Licáon, assumiu o trono dos Pelasgos.

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