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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Capítulo 57: HERA SE VINGA COM A DESTRUIÇÃO DE SÊMELE

SÊMELE (Σεμέλη). Por Maevachan.

Do alto do Olimpo, os olhos de águia de Hera(Ἥρα) não perderam Zeus(Ζεύς) de vista nem por um momento. Depois fixaram-se, cruéis, em Sêmele(Σεμέλη). A senhora do Olimpo esperou o momento oportuno, tomou então a forma de uma velha mulher, bateu à porta de Cadmos(Κάδμος) e pediu para ver Harmonia(Ἁρμονία), a mãe de Sêmele.

— Minha rainha — disse a anciã, em tom lamuriento — vim de muito longe e viajo há meses. Suplico que me dê hospedagem por alguns dias, até que me restabeleça e possa continuar meu caminho.


Harmonia teve pena da velha e mandou que os criados a instalassem em um dos quartos de hóspedes. À noite, convidou-a para jantar. A anciã logo fez amizade com Sêmele, atraindo a atenção da moça com suas fantásticas histórias sobre deuses, dragões, monstros e entidades das mais diversas. Depois do jantar, quando se viu à sós com Sêmele, baixou a voz e sussurrou:

— Sabe, menina, posso também conhecer o passado e o futuro e vejo que espera um filho.

Sêmele arregalou os olhos.

— A senhora viu mesmo isso? Então é verdade! Pensei que tinha sonhado, mas, se tenho um filho no ventre, então tudo aconteceu realmente! Qual o seu nome, senhora...

—  Beroé(Βερόη)!...

— A partir de hoje senhora será minha acompanhante...

Os dias passaram e Sêmele estava radiante com a possibilidade de dar a luz a um filho divino, durante as noites Zeus a visitava para observar a gestação de seu filho e antes que Hélios(Ἥλιος) surgisse no céu deixava o leito da princesa.

Desta forma estava Sêmele deitada em seu leito. Naquele momento estava só, mas ao seu lado ainda havia a marca profunda de um corpo — o corpo de um deus. De fato, Zeus, o mais poderoso dos deuses, estivera até há pouco gozando dos prazeres que lhe proporcionara sua mortal amante.

—  Béroe! — disse Sêmele, espreguiçando-se. Um raio cálido de sol que entrava pela janela de cortinas balouçantes acariciou seu ventre. Alguns instantes de silêncio. — Béroe! — gritou Sêmele, apoiada aos cotovelos. A velha criada entrou apressada.

— Desculpe, minha ama...

— Béroe, esta noite foi verdadeiramente divina... — disse a jovem, sorrindo.

"Então é tudo verdade!", pensou Hera, pois era a esposa divina de Zeus quem estava ali, metamorfoseada na velha criada de Sêmele.

— Vamos, ajude-me a me vestir — disse a jovem, erguendo-se.

— Desculpe, ama, me intrometer em tais assuntos — disse Hera disfarçada —, mas está certa, verdadeiramente, de que este homem que priva de seu leito todas as noites seja mesmo Zeus, o deus supremo?

— Que disse, Béroe? — exclamou Sêmele, enrubescendo. — Um homem, ele? Sua tonta, nenhum mortal poderia amar uma mulher como este divino ser! Homem algum teria o seu toque misterioso, nem beijo algum teria a volúpia que ele, Zeus, põe em seus divinos lábios...

Sim, Hera sabia perfeitamente de tudo isso.

"Mas as carícias que ele lhe dá nunca serão mais do que o mero produto de um instante, estando sempre conspurcadas pelo susto e pelo medo de um terrível castigo", pensava Hera, tentando vingar-se mentalmente da adversária.

Entretanto, desconfiava em seu íntimo, mesmo sem dar-se conta claramente disto, de que justamente ali poderia estar uma parcela do encanto e das delícias que ela, esposa legítima, jamais poderia desfrutar.

—  Mas existem tantos homens, bem, digamos... — disse falsamente Béroe, fingindo escolher o termo certo — ... tão  hábeis, minha ama, que às vezes nós mulheres, frágeis e tolas que somos, deixamos nos enganar com humilhante facilidade...

— Não diga tolices, Béroe — disse Sêmele, entregando as vestes à velha e lhe dando as costas nuas. — Vamos, vista-me.

Hera prosseguiu, sem dar atenção às reprimendas:

— Mas eu tomo por você, princesa: quantas moças não foram iludidas por simples mortais que se diziam um deus qualquer! — E estudando as feições de Sêmele completou: — Eu mesma, minha ama, quantas vezes fui ludibriada por homens que me pareceram deuses.

—  Você?! — exclamou Sêmele, com um riso de escarnio. — Você, Béroe, amada por um deus? Ah, estás delirando... !

Sêmele, contorcendo-se de riso, impedia que a ama lhe cobrisse o corpo, e embora Hera soubesse que o deboche não fora feito a ela, ainda assim sentiu-se tomada pelo rancor — tal o poder que uma afronta, mesmo feita por engano, pode ter sobre a vaidade feminina.

Enquanto escutava o riso, sem poder concluir sua tarefa, Hera percebeu nas costas da jovem as marcas inequívocas que o amor deixara em sua — sim, ela tinha de admitir — nudez perfeita.

Hera tinha diante de si o mapa exato do país da traição: cada mancha arroxeada que Hera encontrava sobre aquela alva pele simbolizava uma província do prazer que Zeus, auxiliado pelos desvelos da amante, havia descoberto e marcado em seguida com a mesma ganância do explorador que descobre um lugar paradisíaco e instala com fúria o seu marco a fim de deixar bem clara a sua posse exclusiva.

Sêmele fez menção de virar-se, mas Béroe não lhe permitiu; temia ver em que outros lugares infames poderiam estar depositadas aquelas manchas.

— Vamos, minha ama, deixe-me vesti-la — disse a criada, introduzindo a veste pela cabeça, como quem ensaca algo que deseja ver logo ocultado.

— Calma, Béroe, não se zangue... — disse a jovem, ainda tomada pelo acesso de hilaridade. — Lembre-se que espero um filho de Zeus!

A velha apertou mais as pálpebras enrugadas.

— Como sabe que é de Zeus? Não foi isso o que eu vi em minhas visões.

— Mas só pode ser! — protestou Sêmele. E contou à velha a sua incrível história.

A velha escutou com visível interesse e depois falou:

— Acredito em tudo o que disse, menina, mas acho que você pode ter sido enganada. Talvez o homem não fosse Zeus. Muitas entidades malignas se fazem passar por ele, para alcançarem suas torpes finalidades. Você pode ter sido ludibriada por uma delas.

— Não é possível! — exclamou a moça, horrorizada — Se isto aconteceu mesmo, o filho que tenho comigo pode bem ser uma criatura terrível e hedionda. Céus,que horror!

— Não fique assim, minha criança — disse a anciã, em tom tranquilizador — É fácil descobrir isso. Com certeza Zeus, ou quem quer que tenha se passado por ele, voltará a procurá-la. Peça-lhe uma prova... — disse Béroe, com voz insinuante.

— O quê?

— Peça a ele uma prova, cabal e definitiva, de que ele é mesmo quem afirma ser.

— Mas que prova melhor poderia Zeus me dar, além das que já tenho? — disse Sêmele, já vestida, abraçando-se com braços fingidamente alheios. — É mais belo que qualquer homem deste mundo.

— Isto nada prova...

Sêmele, já vestida, abraçou-se com braços fingidamente alheios. Parecia não entender tal insinuação...E Beroé completou:

— Você sabe que os deuses usam uma forma humana apenas para se relacionar com os mortais — disse a criada. — Peça, então, que ele se mostre para você em todo o seu divino esplendor,que lhe apareça em toda a sua glória, para mostrar que é realmente o deus dos deuses, da mesma forma majestosa que o acompanha, quando se aproxima de Hera. E verás como ele irá recusar-se esse favor, princesa.

— E se ele não quiser?

A velha se aproximou mais e segredou:

— Antes de fazer o pedido, peça que jure por Estige(Στύξ) que fará o que lhe pedir. Se ele for Zeus, realmente, e se jurar por Estige, atenderá a qualquer pedido seu.— disse a velha,  com um sorriso pérfido no escondido rosto.

Sêmele repetiu, sem compreender direito:

— Estige? Jurar por Estige? O que é isso?— quis saber a jovem.

E a velha explicou em tom solene:

— Estige era uma ninfa, filha de Oceano(Ὠκεανὸς) e Tétis(Τηθύς) e um dia tornou-se mãe do Zêlo, do Poder, da Vitória e da Força. Na guerra dos Titãs, Estige e seus filhos foram convocados por Zeus e auxiliaram-no a conseguir a esperada vitória. Como recompensa, Zeus deu a ela a garantia de todos os juramentos formulados pelos deuses. A palavra jurada por Estige é irretratável. Todo aquele que faz esta jura deve cumprir rigorosamente com a sua palavra, e nem mesmo Zeus tem poder para transgredi-la. E então?

Sémele ficou alguns instantes pensativa, enquanto Béroe penteava, fio a fio, os seus longos cabelos.

— Está bem, lhe pedirei essa prova!

E disse-lhe a velha, com um sorriso pérfido no escondido rosto:

— Apenas não esqueças de uma coisa: deves fazer antes com que ele jure pelo Estige que não te negará qualquer pedido.

Dito isto, a falsa Béroe afastou-se, e Sêmele ficou entregue aos seus próprios pensamentos e então decidiu a descobrir a verdade sobre a real paternidade de seu filho.

Quando a Noite chegou, Zeus reapareceu, como de costume. E Sémele, enganada pelas artificiosas palavras de sua ama, correu abraçá-lo.

— E, então, Sêmele? — perguntou ele — Vim saber como está passando.

Ela olhou o deus com atenção, procurando vislumbrar entre os cabelos e barbas grisalhas algum sinal de sua divindade.

— Muito bem, obrigada. Zeus, meu amado! Desde que você começou a vir até mim, nos braços de Nix(Νύξ), que nunca mais soube dizer, com certeza, quando é dia ou quando é noite.

— Por que estas palavras? — perguntou o deus supremo.

— Porque me parece que a noite quando chega, trazendo-o consigo, me traz um dia ainda mais claro e brilhante do que aquele que está partindo, apenas isto.

Os dois amantes abraçaram-se, após um longo beijo, Sêmele, tornando-se séria, tomou o rosto de Zeus em suas mãos.

— Mas gostaria de lhe fazer um pedido.

— Pode falar, Sêmele. Peça o que quiser e eu concederei.

— Concederá mesmo? — perguntou ela, num tom de dúvida. — Meu querido, preciso que você me dê uma prova de seu amor. Preciso muito.

— Prova de amor? — exclamou Zeus, surpreso. — Para quê?

— Não importa, apenas prometa. Prometa pelo Estige que me dará tal prova. Só assim poderei ter sossego em minha alma e confiar plenamente em você. Então jure. Jure pelo Estige!

Zeus achou graça, relutou durante um longo tempo. Jurar pelo  Estige, o mais irrevogável dos juramentos, e tudo apenas por um capricho feminino. Por fim concordou:

— Está bem... eu prometo!

— Vamos, pelo Estige... — disse Sêmele. — Diga, por favor...

Zeus acedeu, contrariado, e fez o juramento:

— Juro por Estinge que concederei seu pedido.

 E Sémele, aliviada, foi até o fundo do quarto e parou, com um ar misterioso estampado no rosto.

— Quero agora uma prova definitiva de que você é mesmo Zeus que tanto amo — disse ela, com o ar subitamente decidido.

— Do que está falando, criatura?

— Que você nunca apareceu para mim como um deus, sempre como um homem. Belo e nobre, é verdade, mas homem. Quero vê-lo, pelo menos uma vez, em todo teu esplendor divino, quero que me prove que é Zeus, realmente, mostrando-se a mim em toda a sua glória e esplendor, em tua forma real, como o senhor do céu e da terra.

Um véu de preocupação escureceu o semblante do deus. Não, aquilo não podia ser verdade. Ela devia estar brincando, ou então louca. Claro, só uma louca lhe pediria uma coisa destas. E ele sabia perfeitamente que não poderia fazer isto sem destruí-la.

— Sêmele, é melhor que volte atrás neste seu desejo. Nenhum ser humano consegue suportar a visão de todo o esplendor de um deus. Não seja insensata, peça-me qualquer outra coisa, não isso, pois isso a destruirá.

A resposta de Zeus transformou em certeza as dúvidas de Sémele, segundo as palavras de Béroe, que era nada mais nada menos que a própria deusa Hera. Mas, com a coragem do desespero, falou-lhe Sémele em prantos:

— Quero isso ou nada! Se me ama, faz o que me prometeu! Jurou com falsidade? — Afirmou a princesa irredutível. — Você jurou por Estige! Não pode recusar!

Zeus chegou a abrir a boca para lhe explicar o motivo, mas subitamente deu-se conta de que o destino da pobre moça já estava selado, nada adiantava dar a ela todas as explicações necessárias para evitar a sua morte, pois ele havia feito o juramento fatal. Não poderia fazer com que sua palavra voltasse atrás — mesmo que ela mudasse de opinião ou tentasse anular sua vontade anterior.

Zeus , pesaroso, afastou-se um pouco, embora soubesse que era um ato inútil. Depois, concentrou-se e fez com que suas formas humanas fossem lentamente se apagando. Ao mesmo tempo uma luz, a princípio muito tênue, foi brotando do seu corpo, em dourados feixes, como se um segundo sol estivesse a nascer dentro dele.

E a jovem filha de Cadmos pensava:

“Finalmente verei o que mortal algum antes viu.”

Sêmele deu-se conta, subitamente, do que estava para acontecer, quando viu a vaporosa cortina atrás do deus desaparecer como num sopro, e uma nuvenzinha de fagulhas ser expulsa pela janela, impelida pelo vento.

— Não, Zeus ... Não! — gritou a pobre jovem, mas já era tarde demais.

Uma bola de chamas irrompeu de dentro da forma humana do pai dos deuses e se expandiu por todo o quarto,  a terra tremeu e as paredes e o teto do palácio desmoronaram-se em chamas. Relâmpagos espalhavam-se em todas as direções e um fragor intenso de chamas devorando tudo abatia-se sobre a jovem infeliz.  E a filha de Cadmos, cercada pelas labaredas e asfixiada pela fumaça, caiu de joelhos, com a cabeça oculta e os ouvidos tapados.

— O, maldita Béroe! — gritava Sêmele, ajoelhada. — Béroe e a minha maldita desconfiança foram a minha perdição!

Sêmele  não suportou aquela visão e caiu no chão com seu corpo todo chamuscado e já sem vida. Logo ficou reduzida a cinzas, e antes que o palácio inteiro ardesse, Zeus retomou sua forma humana e, soltando um grito rouco, suplicou a ajuda de Hefesto(Ἥφαιστος), pois dentro de Sêmele, porém, sem que ela tivesse sequer sabido, ainda pulsava outra vida.

O divino ferreiro mal teve tempo para retirar do ventre de Sêmele o menino que ela ia dar à luz e, em gestos rápidos, fazendo um talho na perna do senhor do Olimpo, introduziu o pequeno e delicado ser dentro de sua coxa., para manter-lhe a vida.

"Não poderia encontrar um refúgio mais seguro", pensou Zeus, que já era capaz de se alegrar outra vez, com a descoberta daquele agradável consolo.

— Afinal, para alguém que já gestou um ser em sua própria cabeça, gestar outro em sua coxa não será coisa tão penosa... — disse o deus supremo, indo embora. — Pronto, filho meu. Aí ficará até o final de sua gestação. Desta vez, eu mesmo cuidarei de proteger seu crescimento...

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