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domingo, 6 de outubro de 2013

Capítulo 56: A PUNIÇÃO DE QUELONE E O CASAMENTO DE CADMOS E HARMONIA

QUÉLONE (Χελώνη). Por Cris Ortega.

Cadmos(Κάδμος) avaliava com perplexidade as expressões no rosto de sua adorada filha Sêmele(Σεμέλη), pelo fato de ter uma memória tão viva dos acontecimentos há muito relatados. 

— Bem... — Continuou ele — conforme lhe disse a interferência divina está presente em nossa família, os próprios Olimpianos além de me fornecerem minha esposa, como você bem observou, também estiveram presentes em nossa cerimônia de casamento.


E Cadmos começou a relatar o seu encontro com Harmonia(Ἁρμονία) no dia do surgimento de seu esplendoroso palácio. Havia um amplo salão, ladeado por colunas imponentes. Ao fundo, viu Cadmos um suave e delicado vulto feminino. O jovem rei, certo de que aquele devia ser o coroamento de suas longas e penosas jornadas, alegrou-se.

— É minha irmã Europa(Ευρώπη), que eu encontro afinal!

Mas quando se aproximou da maravilhosa mulher, atordoado pela sua beleza, compreendeu que se enganara. Não era conhecida sua. Não lembrava em nada sua irmã, de aspecto oriental. Era loura, quando todos os seus eram morenos. A voz que lhe vinha falando, nos últimos momentos, confirmou:

— Não é sua irmã, Cadmos. É sua esposa. Não se chama Europa; seu nome é Harmônia. E, com ela, terá filhos e fundará um grande reino, e fará a felicidade de milhões! Em Harmônia, a filha de Ares(Ἄρης) e Afrodite(Ἀφροδίτ), encontrará reunido todos aqueles que você amou!

Realmente assim foi. E quase todos os deuses quiseram assistir às suas núpcias, realizadas na cidade recém-fundada. Quase, pois Hera(Ἥρα) havia recusado sair de casa para assistir àquele casamento. Cada um levou um presente a Harmônia de cabelos dourados, “a congraçadora”, entre os quais, Afrodite, sua mãe legítima, entregou-lhe também um colar e um peplo, que se tornariam famosos entre as gerações futuras daquele povo. Apolo(Ἀπόλλων), homenageou os noivos tocando a sua lira, enquanto cantavam as Musas(Μοῦσαι). E Zeus(Ζεύς), para honrar o casal, fez questão de sentar-se na mesma mesa que eles, na hora do banquete.

— Banquete esplendoroso. — Afirmava o senhor do Olimpo. — As festividades de seu casamento em muito me recordam do meu próprio com Hera, se não fosse pelo infortúnio da própria Quélone(Χελώνη).

— Agracie-nos com sua estória — suplicou Harmonia

— Muito bem, por onde devo começar... — Zeus lembrava-se perfeitamente de seu próprio casamento.

O Olimpo estava em festa: Zeus e Hera iriam finalmente se casar. As duas imensas portas do Empírio, algodoadas de nuvens, haviam sido abertas de par em par pelas três Horas(Ὧραι) — Eunônia(Εὐνομία), a ordem; Diqué(Δίκη), a justiça; e Írene(Εἰρήνη), a paz, que faziam o papel de anfitriãs. Atrás delas podia-se divisar perfeitamente o brilho feérico e resplandecente do palácio dourado onde iria se realizar a tremenda festa.

Os convidados iam chegando em grande número, atravessando a ponte multicolorida do imenso arco-íris.

E comentou Eunônia:

— Vejam, irmãs, quantos convidados! Temos que ficar atentas para que não nos escape presença alguma.

Diqué, a deusa encarregada de ir conferindo os nomes dos convidados que chegavam, acrescentou:

— E nenhuma ausência, também!

Os principais deuses iam chegando, sozinhos ou aos pares, conversando alegremente. Deméter(Δήμητρα), vestida com uma túnica drapejada e esvoaçante, surgiu, entre tantas outras divindades, toda sorridente.

Quase todos os convidados, entre deuses, gênios e Ninfas, já haviam chegado, inclusive Poseidon(Ποσειδῶν),  com sua esposa, Anfitrite(Ἀμφιτρίτη), e sua corte aquática, e o sombrio Hades(Άδης), que trazia o seu cortejo igualmente sombrio.

De repente, porém, Eunônia passava em revista com suas irmãs a enorme lista com os nomes riscados.

— Tudo bem?

Írene respondeu:

— Acho que não falta mais ninguém. A deusa Iris(Ἶρις) acabou de chegar, Foroneus, o representante dos homens, também.

— Prometeu(Προμηθεύς) se faz presente?

— Sim, inclusive Oceano(Ὠκεανὸς) e Tétis(Τηθύς), as Ninfas Hesperides(Ἑσπερίδες)... todos já estão presentes... Deixa eu ver... Não! Ainda falta alguém!

Eunônia espichou o pescoço e colocou o dedo sobre um nome da lista.

— A ninfa Quélone. Ela ainda não chegou, e o casamento já vai começar. Por acaso ela já não passou?

— O que terá acontecido? Será que Íris se esqueceu de entregar-lhe o convite?

Íris foi chamada ao portão, e ela confirmou que havia feito o convite a Quélone.

— Vou refazer o trajeto até sua casa e ver o que houve!

A filha de Taumas(Θαύμας) e Electra(Ηλέκτρα) percorreu grande parte do caminho, e quanto mais avançava, mais temia pelo atraso.

— Por Zeus, se ele descobrir que ela ignorou sua festa, vai querer matá-la!

Quélone, entretanto, ainda se encontrava descansando em sua morada, à beira do rio. E espreguiçava-se, despreocupada...

— Hera... quem será ela? Ela pensa que sou o quê, para me largar desta distância toda até a sua casa? Só para lhe bajular?

Não havia vontade alguma de ir a festa de Zeus e Hera. Na verdade não tinha vontade de fazer nada. Sim, porque apesar de ser uma ninfa adorável, era também a mais preguiçosa das criaturas. Dizia um fauno das redondezas:

— Miseravelmente preguiçosa.

Por diversas vezes Quélone ensaiara a sua ida ao casamento. Na verdade, passara a manhã toda indecisa: que roupa usar... tinha que escolher, e isso era para ela muito cansativo. Tinha muito para fazer e decidir. Teria que andar muito até chegar ao lugar da festa. Era exaustivo, e nem sequer queria pensar nisso.

Cogitando se deveria mesmo ir e refrescando os pés na água, a ninfa deixava o tempo correr. E sentiu ainda mais preguiça ao reparar que o Sol não se movimentava há horas, continuava sempre no mesmo lugar; até mesmo Hélios(Ἥλιος) havia deixado o seu carro no céu para fazer parte da festa de seu primo, Zeus, e alongar o dia.

Então, a deusa Íris se pôs na frente do Sol, e Quélone, já de olhos fechados, murmurou:

— Agora é que não vai dar mesmo... Aí vem chuva!

— Preguiçosa! Eu já imaginava!

E a deusa pousou a seu lado, dando-lhe um belo susto.

— Íris, é você? Pensei que fosse chover... Sempre andando pra cima e pra baixo, não é?

— Voando, querida, voando!

Íris foi passar uma água no rosto. E Quélone, esgotada, fechou os olhos outra vez.

— Vamos, levante-se, preguiçosa! Está quase na hora das bodas de Zeus!

— Não posso. Acordei com o pé machucado.

— É mesmo?

— É verdade, Íris. Quer ver?

Quélone levantou-se fingindo certa dificuldade e uma dor inexistente. Mas a deusa não acreditou numa só palavra de Quélone, e obrigou-a a segui-la. Mas a ninfa teimava em atrasar o passo: ora parava para descansar, ora simulava uma insolação. O tempo corria, e Íris, aflita, sentia que daquele jeito chegariam atrasadas.

— Bem, adeus, vou indo na frente, senão Zeus também me matará se não me ver na festa.

Íris perdeu a paciência, e pôs-se a caminho. E Quélone, sentando-se numa pedra azulada, bem no começo da longa estrada do arco-íris que levava até o palácio de Zeus, mal-humorada, perguntava-se:

— Por que não me levou nas costas, se estava com tanta pressa? Depois a preguiçosa sou eu!

Quélone, olhando para cima e vendo que o Sol continuava no mesmo lugar, deitou-se no chão e dormiu.

Todos os deuses, menos Quélone, compareceram à cerimônia das bodas de Zeus e Hera, e ofertaram à noiva presentes preciosos. E um dos presentes que mais gostou foi oferecido por Gaia(Γαῖα), trazido do Jardim das Hespérides. Na margem ocidental, para além das fronteiras do mundo, fez com que nascesse uma árvore majestosa, coberta de maçãs douradas. 

Três Ninfas virgens foram designadas vigias desse jardim sagrado, que também era guardado por um dragão de cem cabeças, Ládon(Λάδων), descendente de Fórcis(Φόρκυς), o famoso pai de tantos monstros, e de Ceto(Κητώ), que havia nascido da Mãe-Terra. Esse dragão jamais dormia, e um ruído ensurdecedor anunciava a sua proximidade, pois cada uma de suas cem goelas fazia um ruído diferente.

Ao término da festa, o casal partiu para a ilha de Samos, a fim de passar a noite de núpcias, enquanto todos os convidados começaram a regressar para suas casas.

Quando Quélone acordou novamente, viu que grupos alegres já voltavam, cruzando por ela. Passavam e olhavam-na curiosos, perguntando-se o que fazia ali. E um grupo de convidados por ali passava, e um fauno todo descabelado comentou com uma ninfa:

— Que festa, hein?

— Esta, sim, valeu a pena!

Deuses, Ninfas, Faunos, todos esbarravam em Quélone, que era a única a seguir em sentido contrário. E a oceânide Dóris(Δωρίς), esposa de Nereu(Νηρεύς), perguntou-lhe:

— Esqueceu algo, querida?

— Não me atormente.— respondeu rispidamente a ninfa.

Dóris estranhou o mau-humor da jovem, quando todos estavam alegres. Mas apesar da festa já haver acabado, ela ainda tentava avançar, nem que fosse para explicar-se com a nova rainha do céu. E começou a tripudiar:

— “Rainha do Céu! Ai, Rainha do Céu, desculpe o atraso! Tudo bem, Rainha do Céu? Quem diria, hein: Rainha do Céu!” Ah... quer saber? Vou é voltar já para casa, e vou dormir um pouco!

E voltou mesmo. Pouquinho mais rápida, desta vez.

Quando chegou lá, jogou-se em seu leito, exausta, sem ao menos notar que alguém lhe esperava, ali mesmo.

— Não foi até lá, então?

Quélone levou um susto. Vendo que era Íris, resmungou cobrindo o rosto:

— Não incomode, pé-de-vento! Diga lá pra Rainha do Céu que um dia desses apareço para dar os parabéns.

Íris, perdendo definitivamente a paciência, levantou o seu bastão mágico de mensageira e atirou Quélone para dentro do lago. Em seguida, com o mesmo poder, lançou também a própria casa da ninfa em cima dela.

— Toma aí sua casa, querida!

Após a lua-de-mel dos recém-casados, Hera foi banhar-se na fonte de Cánatos, em Náuplia, um dos presentes que ganhara, que lhe proporcionava recuperar a virgindade. Depois, foi com o esposo para o Olimpo onde, ao lado dele, passaria a reinar, bela e majestosa. Porém, no caminho, o casal avistou um pequeno ser:

— Olha, querida, que animal estranho... Nunca o vi antes.

— É engraçado, parece que está carregando a própria casa...

— E, do jeito que anda, parece não ter nenhuma pressa.

— Seja aonde for, vai chegar atrasado.

E os dois se retiraram, rumo ao Olimpo. Enquanto isso, um animalzinho, destinado a carregar para sempre sua própria casa, de um lado para outro, um dia, foi uma bela e preguiçosa ninfa. Quélone, com quatro patas e um corpo todo enrugado, agora sim, passaria a andar como ela sempre quis, preguiçosa e lentamente: foi transformada em uma tartaruga.

— Nossa que destino, mais desafortunado... — admirou-se Harmonia.

— Destino cruel é reservado àqueles que desagradam os Deuses —  Completou Cadmos, pedindo licença a Zeus e retirando-se com sua esposa para o centro do salão.

Para a procissão nupcial o casal foi trazido por um grupo notável, com um javali e um leão atrelados à carruagem. Apolo caminhava ao lado da carruagem, com as Musas puxando o coro: “O belo é sempre caro” e o verso “Um objeto de beleza é uma alegria para sempre”.

As bodas de Cadmos e Harmônia — que os próprios tebanos pensavam ser filha de Zeus e Electra —, foram inesquecíveis, com a presença quase completa do panteão olímpico, cujos tronos foram então colocados no mesmo lugar em que, mais tarde, haveria de ser construído o mercado de Tebas, e com a presença imprescindível dos novos amigos de Cadmos. Com o passar do tempo, a tradição, segundo costa, reconheceria em Harmônia uma filha de Ares e Afrodite.

Entre os convivas, dois eram especiais, Dárdano(Δάρδανος) e Iásion(Ιασίων), por assim dizer. Iásion prendeu a atenção de Deméter, que por ele se apaixonou. Inflamados pelo néctar, os amantes saíram da festa e se deitaram em um campo que havia sido lavrado três vezes. Quando voltaram, Zeus, adivinhando o que tinha acontecido, ficou irado e, por ter Iásion tocado em Deméter, começou a planejar o seu fim.

Além de Hera, dois Imortais também não compareceram à cerimônia: Ares, o deus da guerra, porque Cadmos havia matado o seu dragão, e Éris(Ερις), a deusa da discórdia, porque não podia tolerar a companhia dos que se amavam verdadeiramente. Pois, além do esplendor, outro motivo tornou aquelas bodas memoráveis: naquele momento, deuses e homens juntaram-se para celebrar um dos mais sinceros casos de amor que o mundo já vira.

Cadmos a ela se uniu e teve filhos que foram sua grande alegria, prêmio de tantos sacrifícios passados. Foi rei de um povo grande e poderoso. Tornou seu povo feliz, governando com sabedoria.

Em memória de sua irmã raptada pelo touro misterioso, chamou de Europa o seu palácio, o mesmo nome que levaria todo o continente.

Julgando ter contado o suficiente, Cadmos estudava as feições do rosto de sua filha, tentando compreendê-la, no entanto a mesma estava tão envolvida em seus pensamento que sequer viu quando seu pai deixou-a novamente à só em seus aposentos, o tempo suficiente para uma nova visita do senhor do Olimpo...

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