Metanira(Μετάνειρα). Por lordaphaius28. |
Com o desaparecimento de Core(Κόρη), Deméter(Δήμητρα), desesperada, saiu à procura da filha. Não dormia, não comia e nem se banhava. Apenas caminhava e interpelava a todos os que encontrava em sua caminhada. Ao cair a noite, com duas tochas acesas, disfarçando-se de velha camponesa, continuou, de porta em porta, a bater em choupanas e palácios.
Abatida como se achava, cansada pelo sofrimento, ninguém via, nela, a deusa generosa que fazia a riqueza e a felicidade dos campos. Parecia mais uma mulher desesperada, que perturbava a paz dos outros com lamentos e choradeiras.
Às vezes, era até tratada rudemente e com desprezo pelos humanos e pelos gênios das florestas. Tamanho era seu desespero, dor de mãe atormentada, que, por onde passava, as tochas queimavam acidentalmente os campos plantados, atiçando fortes fogueiras nos vales e povoados, mesmo até incendiando os mais áridos desertos.
A procura se prolongou por nove dias, sem comer nem beber. Não interpelou apenas camponeses, soldados, mendigos e poetas. Encontrou, no seu afadigado caminhar, muitos seres extra-humanos, que eram tão comuns naquele tempo. Às vezes saía do tronco nodoso de um carvalho o vulto maravilhoso de uma hamadríade, que partilhava de sua vida e se regozijava quando a brisa agitava suas folhas verdes.
— Não viu, formosa hamadríade, minha triste filha Core?
Nada vira.
Chegava a uma fonte. À flor d’água, numa agitação repentina, surgia uma jovem de cabelos gotejantes.
— Nereida maravilhosa, inspiração e orgulho das fontes, não viu passar Core, minha querida filha?
Dos olhos da nereida fluíam fáceis as lágrimas de simpatia pelo sofrimento alheio.
— Não Deméter, não a vi. Ela não está no império de Poseidon(Ποσειδῶν). Procuramos nos mares e nos rios, nas cascatas e nas nascentes. Não está nas águas, Deméter.
A deusa percorreu o mundo e logo encontrou os duendes.
— Viram minha filha? — perguntou.
Eles pararam suas atividades e olharam a deusa com piedade.
— Não, Deméter, não vimos sua filha em lugar nenhum. Procuramos nas rochas e na mata cerrada.
Deméter, cada vez mais triste, continuou sua busca. Logo, se consultava com os Sátiros de orelhas pontudas e de pés de bode, com pequenos chifres na testa.
— Não viram minha filha, nos campos e florestas?
— Como ela se chama?
— Core...
— O nome é feio. É bela de rosto?
— Sim, é lindíssima.
— Ela é de menor?
— Sim, é quase uma criança.
— Hum, não perseguimos crianças...
E cabriolando, pulando e rindo lá se foram os Sátiros, indiferentes ao seu sofrimento, em busca das Ninfas para perseguir e seduzir.
A deusa nem mais sentia o cansaço que já pesava sobre seus ombros.
— Onde está a minha menina? Digam-me! — perguntou aos silfos.
Eles, ligeiros e esvoaçantes, sacudiram as etéreas cabeleiras.
— Não está no ar, não foi levada pelos ventos. Perguntamos a Éolo(Αίολος), o Rei dos Ventos, e ele também não a viu. Vimos Boreas(Βορέας), o Vento do Norte, que passava vindo da Trácia e ele nada soube dizer. Zéfiro(Ζέφυρος), o Vento Oeste, agitou a vegetação da planície, mas não viu sua filha por onde passou.
Deméter chorou, mas não parou para curtir suas mágoas.
— Onde está Core? — perguntou às salamandras.
E elas, sem pararem seu contorcido bailado entre as chamas, sussurraram:
— Não a vimos no fogo, não está entre as chamas.
Com um soluço arrancado do fundo da alma, Deméter prosseguiu em sua procura.
Chegou mesmo a interrogar Selene(Σελήνη), a deusa-Lua:
— Por acaso não viu, deusa dos raios de prata, minha filha Core sendo levada por algum infeliz raptor?
A resposta foi a mesma, tanto que tudo havia se passado durante o dia, e nem mesmo Helios(Ἥλιος), o Sol, fora testemunha ocular do acontecido. Mas ela não desistiu, e seguiu adiante, empunhando os archotes.
Até as estrelas intensificaram seu brilho para iluminar o caminho de Deméter, que andou durante toda a noite, de um lado para outro, até o amanhecer. E viu a Éos(Ἠώς) conduzindo a sua carruagem,abrindo as cortinas da noite e antecedendo o novo dia.
— Querida Éos, perdi minha filha! Você, por acaso, não viu passar numa carruagem suspeita?
Também nada vira. Estava disposta a ajudar na procura, mas o Sol, seu irmão, a impelia para frente, e precisava seguir adiante. Deméter desesperou-se, já não sabia a quem recorrer.buscava um consolo, um conselho, uma pista... Continuou em sua busca inútil, esquecida de seus deveres para com a Natureza. A Terra logo começava a apresentar as marcas de sua negligência, tornando-se estéril. E Deméter, extremamente exausta, foi sentar-se numa pedra, próximo a Elêusis curvando a cabeça sobre o peito.
Assim esteve bom tempo, abatida, bem ao lado da fonte que um dia água bebeu para saciar sua sede. Quando sentiu que respingava água da fonte sobre seus pés de forma estranha, incompreensível. Passando os olhos sobre o espelho das águas, Deméter percebeu nele o desenho do rosto de alguém que conhecia: era Ciane(Κυανῆ), uma das Ninfas mais íntimas de sua filha. Ainda que um pouco turvada, a imagem a encarava com indizível tristeza.
— Ciane? É você? Mas como...
Parou um instante e viu que não obteria resposta. E Percebeu que era obra de um deus muito poderoso. Ciane estava temendo represálias do deus do mundo inferior, no entanto deixou fluir sobre as águas a guirlanda que Core derrubara ao ser levada. Então, como que por encanto, surgiu também flutuando sobre suas águas o cinto de Core. Apanhando-o, Deméter secou-o em suas roupas, mas logo o encharcou novamente com suas lágrimas.
A deusa Deméter, na sua peregrinação infindável, já no décimo dia de busca, na forma disfarçada de uma mulher comum, passando por Colonas, avistou um velho camponês, que carregava um saco de amoras e bolotas, e sua filha, que conduzia duas cabras para a cidade de Elêusis, e, sem se identificar, aproximou-se e sentou-se sobre uma rocha pelo cansaço. A menina, carinhosamente, lhe chamou:
— Mãe, quem é você e o que faz sentada aí?
O divino coração de Deméter quase saltou pela boca quando ouvir chamar-lhe de mãe. E o velho, largando o peso que carregava às costas, também parou e convidou-a:
— Venha conosco, siga-nos até Elêusis, e te daremos hospitalidade. Minha casa é modesta, mas o pouco que temos podemos partilhar de todo coração.
Foi um aperto no coração, mas Deméter recusou:
— Sigam em paz, e seja feliz em companhia de sua filha, porque eu perdi a minha.
Ao falar, lágrimas divinas escorreram-lhe pelo peito. O compassivo velho e a menina choraram com ela. Afinal, o velho falou:
— Como se chama, minha senhora?
— Doso. — Num fio de voz, Deméter respondeu — Acabo de escapar das mãos de piratas desalmados que tiraram a mim e minha filha à força de nossa pátria a Ilha de Creta.
— Pobre mulher! Acho que poderemos auxiliá-la. Venha conosco e não despreze nosso teto humilde. Talvez sua filha seja devolvida sã e salva. O nosso bom rei Céleos(Κελεός) lhe ajudará no que for possível.
Deméter, mesmo sabendo que isto não seria possível e lembrando-se de que um dia já prestara auxílio à família real de Elêusis, cedeu:
— Vamos, não posso resistir a esse apelo!
Não tendo a quem recorrer, arriscou suas chances entre os mortais. Levantou-se da pedra e seguiu com os dois. Entraram na cidade, donde avistou o modesto palácio de Céleos, mesmo local onde um dia curou o pequeno Triptólemo(Τριπτόλεμος). Mas a deusa, assim que adentrou na cidade, notou que, apesar da imponência do palácio, com seus muitos guerreiros e suas muitas damas e seus muitos oficiais da corte, com seus trajes ricos, havia um clima de tristeza em todos os semblantes. E perguntou ao velho:
— Morreu alguém?
— Não. Mas é como se tivesse morrido. O filho do rei está enfermo e a rainha Metanira(Μετάνειρα) tem o coração despedaçado.
Um escravo, que se encaminhava para o palácio, percebendo ser estrangeira, complementou:
— O menino não dorme, rejeita os alimentos e chora todos os dias.
— De fome? — Questionou Deméter.
— Não sabemos. Parece que ele sofre de medo... Todas as amas que cuidavam dele foram dispensadas. Mal se aproximam da criança, por mais doces que sejam suas palavras, por mais suave que sejam seus passos, ele se enche de temor e recomeça a chorar... Ninguém entende mais nada... A rainha procura desesperada uma nova ama. As jovens mais ricas, das melhores famílias, fracassaram. As senhoras da nobreza se ofereceram também. Mas a criança cada vez chora mais...
— E ainda procuram?
— Sim.
Deméter estava desesperada, não tinha tempo a perder, mas amava os seres-humanos e não podia deixar de lhes prestar auxílio. A deusa esboçou um sorriso. Sim, pensou, seria muito bom tomar conta de um bebê. Desta maneira, poderia ter novamente um filho para cuidar, para preencher no coração o imenso espaço que Core deixara vazio.
— Posso oferecer-me?
— Por que não?
Deméter foi encaminhada ao palácio e pediu aos guardas que a levassem à presença da rainha Metanira. Era tal a angústia geral que ninguém pôs reparo na sua pobreza e no seu jeito excessivamente humilde. A deusa percebeu que realmente se tratava do filho da mesma mãe que havia-lhe entregue Triptólemo. A fome era tanta naquela região, que até os ricos sofriam.
Deméter, apresentada pelo nome de Doso, foi sentar-se num tamborete e, durante longo tempo, permaneceu em silêncio, à espera. Tão cansada estava que imediatamente se viu flutuando sobre seu corpo. Uma leveza suave tomava conta de seu corpo espiritual e ele elevou-se aos céus, buscando forças.
O rei Céleos e sua esposa Metanira se assustaram ao verem a nova criada imóvel, adormecida no tamborete. Tudo fizeram para despertá-la, mas nada conseguiram.
— Estará ela doente? — preocupou-se a rainha.
— Ou será uma louca? — sugeriu o rei Céleos.
A criada Iambe(Ιάμβη), uma jovem irreverente e engraçada, entrou carregando umas mantas que acabara de recolher das cordas onde as pendurara para secar. Chegou bem perto de Deméter, observou-a por alguns instantes e depois disse:
— Ela não está doente e não me parece louca. Acho que está muito triste. Apenas isto. Triste.
Arriou as mantas numa mesa perto e começou a contar piadas num tom alto de voz, dando gritinhos finos e fazendo gestos maldosos. Atraída pelos ruídos, Deméter voltou a seu corpo e retomou o comando de seus gestos e ações.
— Viram! — exclamou Iambe, batendo palmas de alegria. — Ninguém consegue ficar sério perto de Iambe!
Metanira, quando a viu, teve um movimento de surpresa, ao vê-la tão pobre e humilde. Mandou que Iambe lhe preparasse um pouco de vinho. A Rainha se aproximou com o jarro para servir-lhe.
— É bom beber um pouco, senhora. Parece muito enfraquecida.
Deméter recusou o vinho delicadamente e pediu que apenas lhe preparasse o “kykeón”, uma bebida com sêmola de cevada, água e poejo, que, acreditavam, era um calmante de propriedades mágicas. Foi atendida. Depois de beber esta mistura, sentiu-se bem melhor.
Naquela noite, em seu leito, Deméter começou a gemer como se estivesse dando à luz um filho, causando tremenda correria das criadas da rainha, e certamente se sucedia, mesmo não aparentando gravidez. Inesperadamente a deusa, sozinha em seu quarto, antes que as criadas retornassem para atendê-la, retirou debaixo de seu vestido um menino, e chamou-o Íacos. O menino aninhou-se nos braços da mãe e encheu-a de beijos, em seguida procurou-lhe o peito.
Abante(Άβαντες), um dos filhos de Céleos e Metanira, naquele momento, apareceu e teve a infelicidade de zombar de Deméter, por ela ser tão velha e ter dado à luz, e não resistiu:
— Nossa! quanta avidez!
E foi por ela transformado em um pequeno lagarto, que logo saiu se arrastando. Então, Deméter cobriu o rosto com o véu, e o menino desapareceu, quando entrou na sala a jovem criada coxa, Iambe.
— Oh! que bicho nojento! Como será que ele entrou aqui? Pode deixar, minha senhora, eu o retiro.
Iambe agarrou o pequeno lagarto pela cauda e atirou-o janela afora. Então, sabendo ser uma triste mãe que acabara de perder a filha, Iambe fê-la rir com seus chistes maliciosos e gestos obscenos. Em seguida, tentou consolá-la. Então, as criadas de Metanira, dela acompanhadas, entraram depressa no quarto e a encontraram calma e serena, como se nada tivesse acontecido.
Apesar de ter muitas dúvidas, Céleos aconselhou a esposa a fazer então uma experiência. Deméter foi conduzida ao quarto do príncipe que chorava num berço de ouro. E mal entrou no quarto, o menino pareceu mais calmo. Ela chegou junto do berço e murmurou com carinho:
— Parece uma flor de tão lindo...
Foi como ele entendesse e gostasse do elogio, porque desabrochou num sorriso. Os que presenciaram aquilo, gritaram:
— Milagre! O bebê sorriu! O bebê sorriu!
Metanira acabava de encontrar a ama que o seu coração de mãe desejava. A rainha entrevistou a estranha, sem saber quem realmente era.
— Aceita o cargo? Posso confiar em você?
— Aceito. Mas com uma condição.
— Peça quanto quiser.
— Não quero ouro nem prata. Quero apenas confiança.
— Eu confio em você.
— Mas eu quero confiança inteira, absoluta. Nem você nem o rei seu marido e senhor poderão interferir nos meus cuidados.
Metanira teve que aceitar. Se recusasse, perderia a ama, tão festivamente recebida por Demofonte(Δημοφῶν), seu filho, a primeira que o fizera sorrir e a única mão capaz de estender-lhe alimento sem que fosse repelido com lágrimas e gritos. Mas tratava-se de uma desconhecida. Mesmo assim, teve que aceitar.
— Não vai interferir, não é? Eu tenho segredos só para ele reservados, que farão do pequeno Demofonte um príncipe maravilhoso e um futuro rei como nunca houve entre os reis nascidos na Terra.
— Está bem, minha amiga. Nós confiamos em você.
Valeu a pena. O príncipe dentro em pouco era uma festa permanente no palácio. Estava de novo forte e alegre. Cresceu forte, começou a ensaiar o primeiro engatinhado, já tentava erguer-se, punha-se de pé, mal equilibrando o corpinho gorducho, rindo com os dentinhos nascentes, os olhos claros, iluminados de alegria.
Quase ninguém do povo acreditava na radical transformação da criança. O soberano Céleos e a rainha Metanira estavam felizes. Havia até uns criminosos condenados à pena de morte, que deviam ser executados dentro de poucos dias; mas o rei mudou a pena e resolveu dar-lhes apenas alguns anos de prisão. Uma semana depois, vendo o pequeno príncipe ensaiar os primeiros passos, aboliu para sempre a pena de morte em Elêusis.
Deméter se encheu de amor pela criança e, na impossibilidade de rever sua filha Core, começou aos poucos a transferir para o menino todo o seu amor de mãe. Olhando o bebê adormecido, Deméter pensava: "Vou torná-lo imortal! Ocupará no Olimpo o lugar de minha filha Core que me foi cruelmente arrebatada".
Para nutrir o menino, Deméter saía à noite, sem ser vista, para colher papoulas e fazer um caldo para misturar ao seu leite. Feliz, um dia, por ver o pequeno príncipe comer os ricos manjares que Deméter lhe oferecia, a rainha Metanira lembrou-se de que havia na sua cidade inúmeras crianças que tinham fome e nem sempre tinham o que comer. E, com a aprovação do rei Céleos, ordenou que seus servos saíssem a verificar todas as casas onde faltasse alimento para os bebês, para serem abastecidas pelo palácio real.
Ao mesmo tempo, Deméter parecia muito misteriosa nos seus cuidados com o menino Demofonte, cada vez mais robusto e feliz. E Metanira não conseguia refrear a sua curiosidade.
Por mais de uma vez perguntou a Deméter sobre seus métodos, a Deusa quase perdeu a paciência:
— Qual foi o nosso trato?
— Está bem, está bem...
Uma noite, não resistiu. Metanira agitou-se em seu leito. Há dias não dormia direito, tomada por profunda inquietação. Uma sensação estranha apertava seu peito. Alguma coisa lhe dizia que a nova empregava estava roubando seu filho. Levantou-se e foi à janela. A lua enorme banhou-a toda em prata. Jogou uma manta nas costas e foi ao quarto do filho.
O bebê não estava lá. Nem ele, nem a criada. Assustada, ouviu passos no corredor e rapidamente deslizou para um dos cantos escuros do aposento. Sem que Deméter a visse, escondeu-se atras de lindas cortinas, logo Deméter e o pequenino príncipe adentraram ao aposento. E foi com o maior espanto que assistiu a um estranho cerimonial.
A rainha presenciou todo o preparo ritualístico a que foi submetido o pequeno Demofonte. Depois de abraçar e beijar muito a criança, extravasando carinho, a ama não mais lhe deu leite para beber e esfregava a ambrosia em seu corpo, enquanto murmurava palavras mágicas.
Depois Deméter se encaminhou para a lareira, que havia a um canto e em cuja base ardiam brasas que iluminavam fracamente o quarto, aquecendo-o contra o frio que reinava lá fora. Revolveu os carvões acesos e a cinza que havia ao seu lado. Depois banhou o pequeno príncipe com muito cuidado e perfumou o seu corpo com uma essência suave, que retirou de um vaso de alabastro.
Em seguida, remexeu as brasas com uma tenaz de ferro, que foi ficando vermelha ao contato do fogo, fez uma clareira no meio das brasas e tomando o menino, todo nu e sorridente, colocou-o no espaço vazio que ficava no meio das brasas vermelhas. Demofonte foi se transformando em um bebê lindíssimo, mais parecido com um deus do que com um simples mortal.
Ao ver aquilo, horrorizada, Metanira deixou o seu esconderijo, deu um grito, retirou, desesperada, a criança do meio das brasas, que não estava chorando, e avançou para Deméter:
Deméter foi arrancada subitamente do profundo transe em que se encontrava.
— Sua louca! Criminosa! É assim que tratas meu filho? — esbravejou Metanira, tirando o filho do fogareiro. — Que inimigo do rei a mandou para matar meu filho? Vamos, fale!
Deméter voltou-se para a rainha, como se tivesse levado um golpe mortal. Não mostrava medo, mas tristeza, suspirou fundo e olhou-a bem dentro dos olhos. Depois disse:
— Acabou de cometer uma loucura, Metanira!
— Loucura? Salvando o meu filho da Morte?
— Não. Apenas faltou com a sua palavra. Tinha prometido não interferir. Concedeu-me toda a liberdade para dar-lhe condições de se tornar o maior rei que já houve entre os homens, um rei imortal.A ignorância dos homens é tanta, que não os deixa nem mesmo aceitar uma dádiva divina!
— Mas ele não iria morrer?— Exclamou com os olhos atônitos de Metanira.
— De onde o tirou?
— Do meio das brasas ardentes.
— E ele tem queimaduras?
A rainha examinou a criança.
— Não... não tem!
— Há quanto tempo não o via chorar?
— Desde que aqui voce chegou, já faz algum tempo...
— E ele está fazendo o quê?
Só então Metanira reparou que o pequeno príncipe chorava em desespero.
— Ele deve estar todo queimado.
— Sabe que não, Metanira. Observe melhor...
Metanira nada de errado viu na criança.
— Mas então...?
— Agora o problema é seu. Procure outra ama. Eu vou sair de Elêusis agora mesmo...
Assim dizendo a deusa perdeu o aspecto de velha criada e se transformou em Deméter. A luz de sua aura iluminou todo o aposento.
Metanira, com a criança no colo, caiu por terra, suplicando. Deméter ficou irredutível. A rainha, fugindo ao compromisso, interferindo nos seus cuidados, quebrara o encantamento com o qual Deméter estava criando o pequeno príncipe, para que ele crescesse como uma criança celestial, dotada de força sobre-humana, inteligência suprema e imortalidade.
— Mulher insensata! — continuou a deusa — Seu filho seria um imortal, eternamente jovem. Agora tudo está perdido. Sua ignorância e seu possessivo amor de mãe roubou-lhe a imortalidade. Agora será apenas um homem.
— Eu não sabia — gaguejou Metanira. — Por favor, perdoe-me!
Veio Céleos e apoiou Metanira na sua súplica. Fez os maiores juramentos e as maiores ofertas, e concluiu:
— Minha casa é desafortunada!
— Agora é tarde. Seu filho terá de crescer como todos os outros filhos de rei ou de gente do povo. Crescerá, poderá ser fraco, poderá ser forte, poderá ser bom, poderá ser mau. Tomara que seja homem bom, que é tão raro entre os homens... Poderá até ser um rei coberto de glórias, mas um dia morrerá como todos os homens e todos os reis, na guerra ou na doença... Seque suas lágrimas, mulher. Ainda tem três filhos aos quais pretendo conferir grandes dons para que esqueça sua dupla perda.— E completou — Da próxima vez, rainha, não se intrometa naquilo que desconhece. Vou embora de seu palácio, mas desejo que ergam um templo a mim dedicado.
Céleos e Metanira não entenderam suas palavras. Tinham cinco filhos varões, Triptólemo, Eubuleus, Eumolpos, Abante e o pequeno Demofonte; não sabiam que Abante havia desaparecido para sempre, desconheciam o destino do filho menor. E, beijando os pezinhos do príncipe, que se acalmou, por um instante, Deméter afastou-se do palácio, desta vez decidida que fosse para sempre... E a criança tornou a chorar. A construção do templo começou imediatamente. Os homens trabalhavam nele dia e noite. O rei, pessoalmente, acompanhava o andamento da obra.
Um dia, estava Deméter passeando pelas florestas próximas ao castelo, examinando a terra e as plantas, quando viu Triptólemo, o príncipe mais velho do casal real. O rapaz se aproximou timidamente.
— Deméter, sinto muito o que aconteceu. Sei que pretendia apenas o bem para meu irmão caçula. Não fique aborrecida com minha mãe. Ela se assustou, ao ver o bebê sobre as brasas. Compreenda que ela é mulher, não uma deusa, e não está acostumada a assistir rituais místicos.
Deméter sorriu.
— Não fique preocupado. Compreendo a reação de Metanira. Apenas lastimo que o ritual tenha sido interrompido.
Ele segurou as mãos da deusa e as beijou com reverência.
— Obrigado, Deméter, por não guardar nenhum rancor em seu coração. Não tinha sossego imaginando que teríamos conosco, e para sempre, a ira de uma deusa.
— Meu rapaz — disse ela num tom tranquilizador — vou lhe provar que não estou aborrecida. Tenho comigo os grãos de um cereal muito precioso, que ainda não foi entregue aos homens. É um alimento capaz de afastar definitivamente de seu mundo o fantasma da fome. Vou confiar estes grãos a você, para que divulgue a sua cultura.
Tirou umas sementes de uma prega de sua veste e colocou-as nas mãos de Triptólemo, que as examinou com curiosidade.
— Realmente, nunca vi estes grãos. Como se chama este cereal?
Ela respondeu simplesmente:
— Eu o chamo de trigo.
— Deméter! — Completou Triptólemo com certo constrangimento — Temo estar trazendo más notícias. Meus irmãos Eubuleus, que cuida dos porcos, e Eumolpos, o pastor, me disseram que há dez dias atrás estavam dando de comer aos porcos em Colonas, não muito longe daqui, quando ouviram um tropel de patas e viram passar uma carruagem tirada de corcéis negros, que recém levantava vôo da terra. Nela estavam um rei de rosto obscuro, parecendo invisível, usando uma armadura negra, e uma moça muito assustada que parecia ser sua filha Core; mas não tiveram certeza ser ela. Viram também que havia um enorme buraco na terra, que antes não havia nada. Os nossos porcos que chafurdavam ali perto caíram nele, por isso, perdemos todos. Após isso, diante dos seus olhos, a cratera se fechou num piscar de olhos.
Deméter temia que Hades fosse o causador do rapto de sua filha. Mas não se precipitou. Procurou saber mais. Não poderia desistir, pois amava muito sua filha, nem ia desanimar tão facilmente. Era deusa-mãe, deusa da fecundidade, tinha o dom da vida em suas veias e, acima de tudo, era mãe de uma bela mocinha.
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