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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Capítulo 36: PIRRA E O DILÚVIO QUE PÔS FIM AOS HOMENS.

PIRRA(Πύρρα). Por Genzoman.

A paz abandonou definitivamente a Terra, que ficou entregue à cobiça dos homens. As coisas estavam nesse estado quando Zeus(Ζεύς), deus dos deuses, observando o caos que se instalara,decidiu pôr um fim nele.



— Então essa é a natureza da raça humana! Agora é bom que Prometeu(Προμηθεύς) os contemple e admire seus feitos, pois não deixarei um único deles sobre a Terra! Todos perecerão, culpados e inocentes. Eu os destruirei para toda a eternidade, e Prometeu, que tanto os ama, presenciará do alto do Cáucaso a punição que será dada à sua criação!

Enfurecido, aguardava a chegada de seu irmão, o qual havia sido solicitado a sua presença. Enfim Poseidon chegou, e sem mais delongas o senhor do olimpo foi logo se pronunciando:

— Meu irmão, creio que é chegada a hora de castigarmos estes mortais insanos, que transformaram o paraíso terrestre num horrível lugar de dor.

— Estou de acordo, meu poderoso irmão — respondeu Poseidon. — O que você sugere?

— Ordeno que em sete luas quando meus relâmpagos riscarem os céus coberto de nuvens você fenderá a terra com um golpe de seu poderoso tridente. Abrirá as comportas dos mares, que, uma vez liberadas, inundarão a tudo, e a todos exterminarão.

Poseidon então  retirando-se, foi fazer exatamente o que Júpiter lhe dissera.

Quando Poseidon chegou, encontrou seus súditos agitados. As palavras de Proteu já tinham chegado aos ouvidos de todos. Poseidon os reuniu numa imensa clareira iluminada pelos raios de sol que, atravessando a água cristalina, faziam com que os grãos de areia do fundo brilhassem como minúsculas pedras preciosas. A seu lado, Anfitrite, esbelta e altiva, deixava transparecer no rosto belo uma sombra de apreensão. Poseidon estendeu os braços e todos ficaram em silêncio.

— Povo do mar! As instruções de Zeus foram bem claras. Dentro de sete luas os relâmpagos riscarão os céus. Esse será o sinal! Junto com as chuvas torrenciais que cairão sobre a Terra, faremos crescer e transbordar toda a água dos oceanos e dos rios e apenas os picos das mais altas montanhas ficarão descobertos. Somente quando a chuva cessar e Hélios surgir outra vez em sua carruagem de fogo, poderemos fazer descer as águas e deixar surgir a Terra. Esta é a vontade de Zeus, o supremo Senhor do Olimpo!

Neste momento, Deucalião(Δευκαλίων) dava os últimos retoques na imensa barca que construíra, em pouco tempo, contando apenas com o auxílio de Pirra(Πύρρα). As instruções haviam chegado na primeira noite após a chegada da moça. Pela manhã, ela o procurara, nervosa.

— Deucalião, tive outro sonho com Gaia(Γαῖα)! Ela me disse que tinha um recado de seu pai Prometeu e o mesmo mandou que você construísse uma grande embarcação, capaz de levar um casal de animais de cada espécie. E disse também que você precisa se apressar, pois Zeus nos enviará uma grande catástrofe.

Deucalião não pensou duas vezes. Alguma coisa em seu íntimo mostrou que ela tinha razão. Então começou a derrubar grandes acácias, a serrá-las e ajustá-las em pranchas, com a ajuda de sua mulher. O trabalho, incansável, avançou rapidamente.

Na quilha, feita de grossos troncos de árvore, encaixaram as balizas e prenderam os deques com cavilhas de madeira. Vedaram cuidadosamente as junções com betume. No final, colocaram o teto, que também recebeu uma farta camada de betume. Ao fim de muito trabalho, terminou de construir uma grande arca, suspensa em terra seca no alto de um morro. Agora, com a barca pronta, aguardavam um novo aviso. Este chegou também em sonhos.

— Deucalião — disse Pirra — chegou a hora. Reúna os animais. Gaia me falou que os relâmpagos serão o sinal de que tudo começou.

Olhou para o alto, onde negras e ameaçadoras nuvens já cobriam quase todo o azul do firmamento. Deucalião, aflito, procurou a mãe.

— Venha conosco, minha mãe! — pediu, quase chorando — Entre em nossa barca, por favor!

Ela abraçou-o com ternura.

— Não, meu filho. Meu lugar é aqui e não em meio às suas loucas fantasias.

— Não é fantasia! — insistiu ele — Gaia falou à Pirra! Acredite em nós!

Ela balançou a cabeça e desprendeu-se dos braços do filho.

— Não, Deucalião! Fiquem vocês com a barca, que eu vou procurar alimentos para nossa refeição de hoje. Fantasias não matam a fome, rapaz!

Deucalião ainda tentou chamá-la. Com os olhos turvos, viu sua silhueta magra e alquebrada desaparecer atrás de uma colina. Ficou com o olhar pregado onde vira a mãe pela última vez, até que o chamado de Pirra o trouxe à realidade.

— Deucalião! Ajude-me com os animais! O céu está negro!

Deucalião secou as lágrimas com as costas da mão e correu para a barca. Logo encheu com grande quantidade de animais domésticos, para seu sustento, bem como com outros bens e suprimentos necessários, e correu para bordo, levando consigo sua família. No céu, o primeiro relâmpago riscou a escuridão com um imenso e sinuoso traço de fogo...

Boreas(Βορέας), o Vento Norte, que espalha as nuvens, foi aprisionado; logo depois, Notos(Νότος), o Vento Sul, libertado, soprou do Oceano e cobriu todo o céu com a escuridão. De repente o céu e a terra foram iluminados por um relâmpago ofuscante, e uma funesta trovoada fez a Terra tremer, ecoando longamente a prenunciar a destruição. Seguiu-se um silêncio mortal, pesado e amedrontador. Então desencadeou-se um desastre. As nuvens, empurradas em bloco, romperam-se; torrentes de chuva caíram; as plantações inundaram-se. Não satisfeito, Zeus pediu ajuda a seu irmão Poseidon.

Prometeu, horrorizado, viu os relâmpagos de Zeus varando as nuvens de chuva, fazendo jorrar sobre a terra uma densa cortina de água. Em meio a um medonho espetáculo de relâmpagos e estrondos de trovões,e Poseidon, ante ao sinal de Zeus, dirigiu-se a um vale seco e pedregoso e empunhou o tridente, erguendo-o para o alto. Em seguida, o fez descer à terra com tamanha força que o enterrou quase inteiro no solo. Uma rachadura começou a se espalhar do ponto onde se abatera o golpe, espraiando-se para todos os lados, como se fossem as raízes de uma árvore invisível. Daquelas imensas fissuras começou a brotar a água submersa, que corria por debaixo da terra em imensos e borbulhantes veios.

Poseidon foi por todas as partes golpeando o solo, até que em menos de um dia a terra começou a desaparecer, engolida pela água. Os Rios correram montanhas abaixo, inundando os campos, lançando o refluxo do Oceano sobre as praias, arrastando consigo cidades e templos e engolindo rebanhos, animais selvagens, homens e árvores.

— Que as ondas rompam todos os limites, derrubem as casas, arrebentem todos os diques!

Diante dos olhos deliciados de Zeus, que a tudo observava do alto, desfilaram envoltos em ondas de incrível ferocidade gafanhotos, moscas, ratos, esquilos, zebras, leões, elefantes, casas, templos e palácios.

Neste momento, ao ouvirem o estrondo da tempestade se aproximando, Deucalião e Pirra, apressaram-se a recolher as pranchas que ligavam a porta da arca com a terra. E mal conseguiram fechar a porta, e a tempestade desabou. As águas torrenciais que avançavam elevaram-se e levantaram a arca do chão.

Em meio a tudo isso, passavam homens, agarrados em qualquer coisa que sobrenadasse na violência das águas. A maioria das pessoas, no entanto, passavam já mortas. As aves, não encontrando mais nenhum lugar seco onde repousar, deixavam-se cair às águas, renunciando à luta pela vida. O fundo do mar tremeu, tangido violentamente pelo pesado tridente de Poseidon. E as águas continuaram a subir.

— Eles vão todos morrer! — gemeu Prometeu — É o fim de tudo!

Podia ver os homens correndo como formigas assustadas, procurando escapar das vagas encapeladas que se erguiam assustadoramente e desabavam sobre as casas mais próximas das praias.

— Subam para as montanhas! — gritava Prometeu, inutilmente.

Os homens não o ouviam. Acostumados às planícies, acreditavam que os montes eram habitados pelos deuses e toda a sua corte celestial, e o peso de seus erros era tanto que não os deixava subir às divinas moradas. Vendo a ameaça das águas, alguns chegaram a tentar uma escalada, mas uma força imperiosa os trouxe de volta ao solo molhado.

A noite se confundiu com o dia e Prometeu não pode mais contar as luas. O mar rugia estrondosamente, a água do oceano misturou-se com a dos rios e as mais altas árvores já estavam cobertas. Prometeu sacudiu debilmente a cabeça e olhou a águia que se aproximava.

— Por que não devora meus olhos e poupa-me da visão deste espetáculo horrendo?

As águas subiam lentamente e Prometeu sentia na pele os respingos gelados das ondas mais fortes. As lágrimas jorravam de seus olhos e mergulhavam no mar já próximo de seus pés.

O corpo de uma criança veio chegando, trazido pela correnteza, esbarrou em suas pernas, desviou-se e seguiu seu caminho através de seu infinito túmulo de um azul profundo. Prometeu deu um grito de agonia e fechou os olhos.

— Não quero ver mais nada!

Deixou a cabeça tombar sobre o peito e procurou o alívio da inconsciência. Não viu quando a barca passou ao longe, arrastada pelas águas, e os chamados aflitos do filho que não conhecia foram abafadas pelo ronco furioso do mar.

Só, a arca de Deucalião flutuou acima do nível das árvores, mas águas continuaram a subir, até que finalmente apenas alguns cumes de montanhas permaneceram visíveis, como o Olimpo e o Parnasos. A arca ficou envolvida em densa neblina, ocultando-se aos olhos de Zeus, e este, depois de nove dias e nove noites, vendo que não havia homens injustos, vivos, ordenou a Poseidon que fizesse cessar a inundação. Poseidon, chamou logo os seus tritões, semideuses marinhos metade homens, metade peixes.

— Vão, agora, e devolvam tudo à normalidade — disse, com autoridade.

Um exército de tritões partiu, espalhando-se pela Terra. Surgindo de vários pontos das águas, fizeram soar as imensas conchas marinhas, o que milagrosamente fez as águas recuarem de volta aos leitos dos rios e dos oceanos.

Quando Prometeu abriu os olhos, os tritões passeavam pelas águas, acalmando-as com seus tridentes dourados, e o primeiro raio de sol se espremia entre as nuvens densas, deixando na escura superfície líquida uma resplandecente gota de ouro...

Algum tempo depois que a chuva parou a arca, na manhã do décimo dia, sofreu um súbito impacto, o que mostrou que a mesma havia encontrado terra outra vez. Balançou, inclinou-se de lado e ficou imóvel. Deucalião correu para abrir a janela. A chuva tinha parado. Um lençol de água estendia-se até o horizonte em todas as direções, menos sobre as duas pequenas ilhas coroadas por dois picos semelhantes, onde haviam aportado. Encalhou no alto do monte Parnasos, não muito longe da devastada  Tessália, enquanto o Mar voltava às suas costas e os Rios aos seus leitos.

— Veja, Pirra! Estamos em terra firme! Esperemos até que as águas baixem e consigamos desembarcar.

— Estas ilhotas certamente são dois picos.— Afirmava Pirra.

Alguns dias depois, o nível das águas começou a baixar, e Deucalião reconheceu aquele lugar: não haviam ido muito longe.

— Estamos no topo de um monte! Acho que o pior já deve ter passado, mas antes de desembarcarmos precisamos ter certeza de que não vai cair outra tempestade.

Então ele soltou uma pomba. Naquele tempo, todos sabiam do instinto infalível desses pássaros para detectar o mau tempo. Se ela voltasse alarmada, significaria que vinha mais chuva, e eles não deveriam deixar a segurança da arca. Porém, a pomba empoleirou-se por um momento na janela aberta, olhou em volta examinando o tempo e voou alegremente para o pico da montanha.

— Os animais já estão cansados de estar presos por tanto tempo.— Afirmou pirra.

Com cuidado, arrancaram as trancas que seguravam a grande porta de troncos encaixados. Deucalião desceu pisando a terra do cume da montanha, seguido por Pirra. Em seguida, ambos sacrificaram um carneiro a Zeus para aplacar-lhe a ira. E depois, tomaram seu caminho para algum lugar que pudessem reconhecer e, por acaso, encontrar alguma família sobrevivente. Fora da barca, o espetáculo era desolador.

Onde antes as águas haviam invadido, agora estavam à mostra outra vez as árvores, as casas, os templos, os palácios e uma multidão de homens e animais mortos. Parecia que era a própria Terra que ressurgia de dentro das águas, toda lavada e pronta para ser novamente ocupada.

No entanto, o silêncio e a presença da morte foi só o que encontraram. Antigos lugares que antes fervilhavam de pessoas, mas que agora eram habitados somente pelo silêncio. De mãos dadas penetraram num grande teatro, onde dias antes uma multidão alegre rira das piadas e gracejos de uma velha comédia, pouco antes de morrer afogada.

No centro do palco, Deucalião enxergou o cadáver de um dos atores, que ainda tinha presa ao rosto uma máscara, toda dobrada e enferrujada. Curioso, retirou o dourado e sorridente adereço, mas por detrás da máscara só havia agora uma caveira pálida, que sorria, a seu modo, o grande e compulsório sorriso da Morte.

Pirra virou o rosto para o lado, com um ar compungido.

— Vamos, Deucalião. Aqui só há desolação e morte!

Andaram por muito tempo, e viram que nada ficara em pé.

— Ninguém sobreviveu à cólera de Zeus, a não ser nós! — disse Deucalião à esposa.

— Oh! — gemia a mulher. — Que faremos vivos, num mundo de mortos?

— Procuremos nos consolar, minha querida Pirra! — exclamou Deucalião, que intimamente estava grato a Zeus por haver poupado de sua ira a esposa, seu consolo e sua razão de viver. Já Pirra, de braços cruzados ao peito, chorava em silêncio.

De repente um grito monstruoso e ensurdecedor inrompeu aos céus, e figuras tenebrosas desabaram sobres os corpos. E assim o casal presenciou as Queres(Κῆρες) que se entretinham bebendo o sangue dos cadáveres e dilacerando suas carnes com as garras afiadas. As Hárpias(Άρπυιες) enchiam o ar infecto com gritos estridentes e carregavam os corpos dilacerados para o vestíbulo dos infernos.

O céu, ainda encoberto por nuvens cinzentas, deixava ver retalhos de um azul pálido. O solo era um imenso charco fétido e cheio de abutres que disputavam com as Queres a carne dos corpos já em decomposição. As árvores quebradas, cobertas por uma lama escura, pareciam fantasmas ameaçadores. As Erínias(Ερινύες) vagavam entre os destroços iluminando-os com suas tochas e estalando o chicote nas pilhas de madeira podre, que restaram daquilo que antes era a morada dos homens.

Deucalião e Pirra entreolharam-se, assustados.

— Não podemos ficar aqui, Deucalião! Olhe o horror em que está o mundo, temos que voltar!

Retornaram a Barca e tornaram a fechar a pesada porta. Os animais, agitados em suas jaulas, emitiam ruídos ensurdecedores.

— E agora, Deucalião, o que faremos?

Ele se sentou num dos pacotes de alimentos.

— Vamos esperar mais alguns dias. As aves de rapina em breve não terão mais o que comer e irão embora. Quando o sol surgir, secará a lama do solo e então poderemos deixar a barca.

Muitos dias se arrastaram, lentos e desolados, antes que o sol rompesse definitivamente a cortina de nuvens e evaporasse a umidade da terra. Vapores sutis elevaram-se da lama até que ela se transformou em barro seco.

Ainda amedrontados, Deucalião e Pirra desceram a barca. Pirra sacudiu um arbusto, fazendo cair o resto das folhas ressequidas que ainda restavam. Olharam em volta, desolados.

— Temos muito trabalho pela frente, Pirra. Vamos soltar os animais.

Desta vez a paisagem que encontraram era desolada. Templos desertos, onde as estátuas dos deuses que não haviam tombado ainda permaneciam em pé, em poses e gestos tão vividos que pareciam prestes a descer de seus nichos para ocupar o lugar dos vivos.

Passaram por ruas desertas. Entraram e saíram de casas vazias. Percorreram cidades inteiramente abandonadas. Tudo estava ocupado pelo vazio.

Deucalião e sua família não sabiam a amplitude da inundação. Só restava-lhes a ajuda de deuses amigos. E entraram num templo coberto com destroços, lama e algas marinhas, onde, achegando-se ao altar onde havia uma estátua toda arruinada, aonde não crepitava fogo algum, com muita tristeza, prostraram-se e rezaram à divindade que desconheciam, daquele lugar, pela salvação da humanidade. Rogaram esclarecimentos por tantas desgraças aos seres da Terra.

Do Olimpo, os deuses assistiram às águas subirem e descerem, viram os monstros dilacerarem os cadáveres, contemplaram a desolação do solo destruído. E viram a barca pousada em meio às ruínas daquilo que fora o lindo mundo de Gaia.

— Que pena, — disse Gaia, com os olhos enublados pela tristeza — acabaram-se as flores e as matas, não há mais o colorido festivo que enfeitava as planícies, nem os respingos de ouro na superfície translúcida dos lagos!

Zeus abraçou-a com ternura.

— Em breve a vida voltará a colorir a planície, Gaia. Reconheço agora que há necessidade de humanos habitando e cuidando da natureza. Deucalião e Pirra farão um bom trabalho, tenho certeza. São filhos de deuses, têm um espírito imortal e sensibilidade na alma. Já enviei Hermes(Ἑρμής) a eles, para que saibam que contam com nosso auxílio.

— Pobre casal — suspirou ela. — Enfrentarão tantas dificuldades, que temo que desistam.

Hermes chegou, riscando o ar com o ouro das asas de suas sandálias. Este lhes disse:

— Sou Hermes, o mensageiro dos deuses!

Deucalião esfregou os olhos, procurando afastar a alucinação. Pirra apenas sorriu.

— O poderoso Zeus ficou tão satisfeito com seus agradecimentos que me enviou para dizer-lhes que podem pedir o que quiserem. Ele dá sua palavra de que o desejo será realizado.

— Nós gostaríamos que o mundo fosse povoado novamente. Somos somente eu e minha mulher. Teremos que viver sozinhos na Terra? — Deucalião enfim, gaguejou na presença do deus e completou: — Não queremos habitar um mundo sem vida! Como faremos para repovoá-lo, se já não temos mais forças nem idade para isso?

— Não se preocupem voarei para o Olimpo e passarei seu pedido ao supremo senhor dos deuses.Enquanto isso dirijam-se ao templo de Delfos e lá aguardem sua resposta. — Dizendo isso, elevou-se aos ares e sumiu no infinito.

Sentindo-se renovado com as palavras de Hermes,  Deucalião dirigiu-se a Pirra e disse-lhe:

— Minha esposa, única mulher sobrevivente, unida a mim primeiramente pelos laços do parentesco e do casamento, e agora por um perigo comum, pudéssemos nós possuir o poder de nosso antepassado Prometeu e renovar a raça, como ele fez, pela primeira vez! Como não podemos, porém, vamos àquele templo conforme nos foi solicitado pelos Deuses.

Hermes voltou rápido ao Olimpo e transmitiu o pedido a Zeus, que pensou um pouco e disse:

— Bem, que assim seja. Não me lembro de tê-los ajudado a manter-se salvo da destruição, mas estou comovido com a sua dedicação e culto aos deuses do Olimpo. Já não estou mais irado com os homens.

Para mostrar que falava sério, enviou a própria Thêmis(Θέμις), deusa da Lei, para instruir Deucalião e Pirra. Ela voou para a Terra e foi encontrar-se com a família de Deucalião, em Delfos.

Ao chegarem Delfos. Deucalião e Pirra entraram no templo em homenagem aos deuses. Do teto pendia ainda um musgo lamacento, que o vento fazia dançar sobre as colunas, enquanto dos capitéis desciam finas cordas de água. Sobre os altares, os vasos estavam vazios, e não havia fogo algum a brilhar. Deucalião e Pirra, comovidos, lançaram-se aos pés da estátua dos deuses.

— Poderosos deuses, que nos observam, com clemência, do alto! — disse Pirra. — Ajudem-nos, de que maneira podemos agir nesta situação?

Uma voz suave saiu da boca cerrada da estátua da deusa Thêmis:

— Tudo vai ficar bem meus amados, se quiserem ver de novo a terra povoada, façam exatamente como vou lhes dizer. Após cumprirem meus ritos, quero que saiam do templo — disse a deusa. — Depois, com a cabeça coberta e as vestes desatadas e atirem para trás os ossos de sua mãe! — completou, de modo enigmático.

As palavras da deusa foram ouvidas com assombro, já que Deucalião e Pirra tinham mães diferentes, ambas enterradas em sepulturas inteiramente cobertas pelas águas, e em outro país muito distante desse. E Pirra, apesar de muito devota aos deuses, retrucou:

— Perdoe-me, ó deusa, se com temor me nego a obedecer. Pois não vamos nos atrever a profanar os restos de nossos pais; contudo, temos mães diferentes. Ademais, nem ao menos sabemos onde nos encontramos.

Pirra, não entendendo o que a deusa desejava, começou a chorar.

— Ó deusa, como faremos tal coisa? — exclamou. — E mesmo que reencontre os ossos, como poderia cometer tamanha blasfêmia?

No entanto só o silêncio persistia, atrapalhado apenas pela respiração do dois que se encontravam novamente em um templo vazio. Pirra ficou confusa com o que foi dito, não se sentia capaz de fazer o que  estava sendo pedido em seguida indagou ao esposo:

— Mas o que disse ela? — perguntou Pirra, horrorizada. — Os ossos de nossa mãe! Que absurdo!

Deucalião suspirou fundo, pensou um pouco e disse:

— Calma, querida! Acho que compreendi o que Thêmis quis dizer com aquilo. É muito simples! — esclareceu Deucalião. — Se minha sagacidade não me ilude, poderemos obedecer a ordem sem cometermos qualquer impiedade ou profanação. Falo sobre os ossos de nossa mãe. A Terra é a mãe comum de nós todos; as pedras são seus ossos; poderemos lançá-las para trás de nós; e creio ser isto que a deusa nos quis dizer. Pelo menos, não fará mal tentar.

Resolveram tentar. Eufóricos, os dois velaram os rostos, afrouxaram as vestes, e saíram do templo. Juntaram todas as pedras que puderam encontrar, uma boa quantidade de seixos e dividiram-nos em dois montes iguais. E de pé, olhando o sol que brilhava, exclamaram:

— Zeus, senhor do Olimpo, deus dos deuses e dos homens, ouça nosso pedido. Precisamos de companheiros que nos auxiliem na árdua tarefa de repovoar o mundo. Atenda o nosso desejo, suplicamos!

E jogaram as pedras para trás, por cima dos ombros...

Do Olimpo Zeus acompanhava toda a conversa com a qual Deucalião e Pirra tiveram com Thêmis e regozijou-se com suas súplicas.

— Pedido muito justo, aliás — comentou Zeus.

E novamente olhou para baixo. Viu Deucalião e Pirra quando os dois jogaram as pedras para trás, fez com a mão um gesto rápido e amplo, reunindo a mais sutil matéria astral. Em seguida, apontou para a carruagem de fogo de Hélios e, com outro gesto, trouxe de lá uma língua de fogo e lançou tudo em direção à planície...

Deucalião e Pirra olharam para trás, logo que jogaram os seixos por cima dos ombros. Com espanto, viram as pedras amoleceram e começaram a tomar forma. Pouco a pouco, foram assumindo uma grosseira semelhança com a forma humana, como um bloco ainda mal acabado nas mãos de um escultor. A umidade e o lodo que havia sobre elas transformaram-se em carne; a parte pétrea transformou-se nos ossos; e tudo maravilhosamente se transformou: as pedras lançadas pelas mãos de Deucalião, transformaram-se em homens, e os que Pirra atirou tornaram-se mulheres.

Do alto aproximou-se uma nuvem sutil de matéria astral que se dividiu igualmente entre os homens e as mulheres, penetrando em seus organismos ainda inertes. Logo atrás, uma língua de fogo abriu-se em várias e sumiu dentro de seus corpos recém-criados. Eles se levantaram, lentamente, e olharam em volta, sem compreender direito o que estava acontecendo, piscando os olhos deslumbrados ante o mundo devastado para o qual acabavam de nascer.

No Olimpo, Gaia sorriu e olhou para Zeus.

— Que lindo! Com que simplicidade lhes deu a vida!

— E terão também um corpo espiritual, feito de matéria astral, capaz de trabalhar em outros planos de consciência, capaz até mesmo de elevar-se até se perder na grande consciência do Universo. Era isto o que faltava à geração de Prometeu.

Thêmis, que a tudo assistia calada, aproximou-se e tocou o braço de Zeus.

— Não se esqueça, Zeus, que uma séria ameaça paira sobre a cabeça desses novos seres humanos. Os males que Pandora deixou fugir ainda existem num nível astral inferior e, alimentados pela maldade e pelos vícios dos homens que foram destruídos, estão mais fortes ainda e em breve estarão assediando esses pobres mortais que acabaram de nascer, procurando despertar neles as paixões e instintos criminosos dos quais se alimentam. Esses homens de agora terão que ser protegidos.

— Thêmis — disse Zeus — espero que eles saibam despertar o Amor no coração. Se souberem Amar, estarão protegidos. Vamos acreditar nesta nova geração!

Era o fim da Geração de Bronze, dando lugar a uma nova era: a Idade Heróica.

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