Social Icons

twitterfacebookgoogle pluslinkedinrss feedemail

Pages

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Capítulo 39: O RAPTO DE CORE A AMADA FILHA DE DEMETER

HADES(Άδης) e CORE(Κόρη). Por Genzoman.

Ao chegar ao Olimpo, Hades(Άδης) foi pedir a Zeus(Ζεύς), que falasse com Deméter(Δήμητρα), para que lhe desse sua filha em casamento. Queria tê-la consigo em seu reino, para com ele viver e reinar.



— Estou apaixonado por nossa sobrinha, meu irmão.

— Sobrinha? Que sobrinha?

— Core(Κόρη), filha de Deméter. Aquela a quem não se sabe quem é o pai...! Você, por acaso, não sabe quem é o pai... não é mesmo?

Zeus, preocupado, olhou para um lado e para outro, pôs o dedo sobre os lábios para lhe pedir silêncio, e sussurrou:

— O que pretende, irmão?

— Será que você me daria permissão para eu fazê-la minha esposa?

— Esposa?! — Surpreendeu-se Zeus.

— É...— Completou Hades — Eu ando meio solitário em meu Reino Sombrio. Não tenho com quem dividir o meu leito, e acho que já está mais do que na hora. Preciso de uma esposa, casta e digna de reinar. Meu reino no subterrâneo é triste e melancólico, e precisa de uma presença feminina como a da formosa Core. Eu a tornarei feliz, prometo.

Zeus teve receio de ofender Hades negando-lhe a sobrinha, que escondia ser sua filha. Mas teve receio também de ofender Deméter com sua permissão. Por isso, sem dizer uma palavra, limitou-se a piscar o olho para o irmão, aprovando em silêncio, o que trouxe satisfação ao deus do submundo. Zeus intercedeu e enviou até a deusa, em seu templo, a divina e multicolorida Iris(Ἶρις), levando a mensagem de Hades.

— Branda Deméter, quer Hades casar-se com a bela Core. E Zeus se mostra a favor, se assim o quiser, só aguardando nos Céus o seu justo consentimento!

— Core?! É muito moça ainda! — Indignou-se Deméter. — E eu a quero comigo para aprimorar a vida no destino que lhe cabe. Respeito Hades meu irmão, mas ele deve se conter e esquecê-la! Que ele procure suas amantes! Diga a Zeus que assim penso, desta forma zelo e protejo minha filha aqui na Terra!

Iris desceu aos Infernos e comunicou a decisão negativa de Deméter:

— Senhor das trevas, deus dos mortos, soberano do Tártaro, imploro que controles a sua ira divina e ajude a manter o bom relacionamento com o Olimpo. Esqueça a sua paixão, porque Deméter nega seu pedido. Quanto a Zeus, fez o que fez, nada mais, em relação ao seu matrimônio com Core, como deseja!

O rei Hades se calou em seu trono. Conhecia bem sua irmã e tinha por ela grande apreço, mas, também, reconhecia sua teimosia. Era definitiva. Jamais ouviria um “sim” de Deméter. Porém, pensou sobre o caso, sem deixar que percebessem, ainda, em seu coração, a fulminante paixão pela deusa das flores, Core, sua sobrinha.

Deméter tinha a seu cargo uma das tarefas mais importantes. Fora ela quem ensinara aos homens o cultivo da terra. Não se limitava a ensinar. Presidia às semeaduras, ao crescimento das plantas, às colheitas. Dela dependiam todos os homens, e sem ela as sementes não germinavam, as plantas não cresciam, os frutos da Terra não tinham o menor valor.

Assim sendo, Deméter vivia sempre ocupada, indo de um país para outro, de terra par terra, de campo para campo, correndo em auxílio dos lavradores e providenciando para que o seu duro labor fosse beneficiado pelos elementos do solo, pelas chuvas e pelo Sol oportunos, evitando a geada, o granizo, as secas impiedosas ou as chuvas excessivas, porque tanto o Sol como a chuva em demasia perturbavam as hortas e a plantação em geral.

Grande era a alegria de Deméter, maior que a própria alegria dos homens do campo, quando os prados reverdeciam, as flores desabrochavam, o louro trigal fulgia ao Sol e os frutos sadios apontavam apetitosos, por entre os ramos abençoados pelo Céu.

Só comparável à alegria dos frutos sempre renovados era a que provava quando acolhia em seus braços carinhosos sua filha Core, que era boa e amorosa. Mas, constrangida pela responsabilidade assumida, perante os homens e os deuses, de animar as culturas e fecundar as terras, das quais dependiam tantas e tantas vidas humanas, Deméter nem sempre estava junto da filha querida. Com tristeza partia para o cumprimento de sua missão. Com infinita doçura regressava para mirar-se nos olhos festivos de Core. Mas precisava, sempre, partir outra vez...

Deméter, num certo dia, havia levado Core, pela primeira vez, para fora dos limites de Elêusis. Levou-a para perto de Hena, onde havia um lago escondido no bosque, no interior da ilha de Trinácria, onde, pensava ela, era um lugar abençoado por eterna primavera, pois Deméter precisava ir para a ilha de Creta, para exercer os seus ensinamentos ao povo de lá, ensiná-lo a plantar e colher seus próprios alimentos.

A presença de Deméter e sua filha Core fez calar a fúria do flamejante vulcão Etna. Costumava cuspir fumaça, faíscas e lavas por todos os lados, chegando a abalar até o escuro reino do deus Hades. E há muito isso o incomodava, e pensava que a qualquer momento tomaria uma atitude. Mas foi se acostumando, e isso acabou lhe trazendo momentos de incessantes irritações.

Passava o tempo todo mau-humorado, se segurando no trono a cada tremor de terra, que ameaçava desabar sobre sua cabeça. Não conseguia descansar nem ter um momento sequer de paz. Não bastasse o seu reino sombrio, ainda tinha que suportar tamanha intranquilidade. Quando não era um tremor que abalava as estruturas de seu palácio, era uma grande quantidade de fumaça que era obrigado a respirar.

No entanto, de repente, as inquietações deram uma trégua, e ficou assim por um bom tempo. Finalmente Hades pôde esticar as canelas e descansar um pouco. Mas levantou-se às pressas, porque sentia que algo estava errado. Teriam os titãs sido libertados? Teriam, finalmente, dado um tempo à sua ira incontrolável? Isso começou a incomodá-lo, e resolveu investigar.

Chegada a hora de se despedir da filha, como que sob a impressão de um mau pressentimento, Deméter recomendou-lhe, com a maior insistência, que não se afastasse do palácio em que se encontrava. Deméter ainda temia que Hades ou outro pretendente lhe levasse Core. No templo, estaria segura.

— Mas não posso nem descer até a praia, para brincar com minhas amigas, as Ninfas do mar?

— Podes. Mas não te afastes delas, nunca. As Oceânides são boas amigas e as filhas de Aqueloo(Ἀχελῷος) te protegerão. Mas nunca te afastes sozinha. Prometes?

Core prometeu. E Deméter, de coração apertado, beijou-a repetidas vezes, antes de subir ao seu carro, puxado por dragões alados, com o qual percorria os caminhos e os campos da Terra.

Na sua doce inconsciência, Core foi procurar suas amigas Oceânides, enquanto as Aquelóias não desgrudavam dela. Lá estavam elas, recém-saídas do fundo das águas. Estavam dançando e cantando, e Core foi a elas se juntar. Reunindo uma boa quantidade de conchas lindíssimas, uma das Ninfas preparou um colar e o ofereceu a Core.

Aquilo inspirou-lhe uma ideia. Resolveu retribuir o presente da ninfa preparando-lhe uma grinalda de flores.

— Venham comigo. Vamos até o campo aqui perto colher flores para uma porção de grinaldas.

As Ninfas filhas de Oceanos recusaram, com pesar. Não podiam afastar-se da praia, porque viviam de aspirar a brisa salgada do mar. Do contrário, morreriam. Ademais, preferiam permanecer na praia, pois dividiriam o tempo estando com ela e Prometeu, que se encontrava acorrentado no Cáucaso, e lhe faziam companhia.

— Bem, queridas, então esperem aqui. Eu vou aqui pertinho, encho o meu avental de flores e já estarei de volta.

Enquanto isso no submundo, Hades voltou a admirar através da fonte encantada do mundo subterrâneo a brincadeira de Core com as ninfas. Não suportando mais aquela sensação que inebriava-lhe o coração, finalmente Hades decide sair de seu reino, montado em seu carro de negros corcéis, com um plano formado em mente.

Na superfície, já que desconheciam as ameaças que rondavam a filha de Deméter, e a menina imprudente, esquecendo o conselho de sua mãe, se afastou sozinha, enquanto as Ninfas Aquelóias, despreocupadas, cantavam e dançavam, como gostavam de fazer. Estava maravilhada, nunca vira flores tão lindas. Encheu o avental e já ia voltando quando, um pouco mais além, viu flores ainda mais delicadas, de cores ainda mais vivas. Jogou no chão as que havia colhido, começou a apanhar as novas flores, que logo a seguir deixou cair, quase com desprezo, porque mais adiante as flores tinham muito mais perfume e pétalas mais suaves e de cores mais deslumbrantes, como lírios e violetas.

Assim foi que, pouco a pouco, a filha de Deméter, totalmente esquecida dos conselhos de sua mãe, aventurou-se pelo campo, o avental sempre renovado com flores cada vez mais bonitas e de perfume mais delicado!

Porém, já ia regressar, feliz, quando reparou num arbusto, como nunca vira antes, todo coberto com as flores mais maravilhosas do mundo, que se encontrava junto a um lago de águas cristalinas.

— Somente Deméter, minha querida mãe, podia inventar estas flores.

E, outra vez esvaziando o avental, correu para o arbusto, disposta a arrancá-lo por inteiro, com raízes e tudo, para replantá-lo nos jardins do palácio de sua mãe, no Olimpo. Tinha flores de diferentes matizes,eram narcisos de tonalidades diversas, todas com um traço comum de parentesco, formando o mais rico, deslumbrante e variado ramalhete de flores jamais visto. Só uma coisa a intrigava: um certo brilho luminoso nas pétalas, que lhe inspirou receio.

— Não serão venenosas?

Mas logo afastou a ideia, que lhe pareceu tola. E, agarrando cuidadosamente o arbusto pelo tronco, pôs-se a tentar arrancá-lo do solo. Estava difícil. O arbusto parecia fortemente enraizado. Tentou novamente. Parou, preocupada. Não somente ele resistia, mas pareceu-lhe também ouvir um estranho rumor sob seus pés.

— Será que existe aí embaixo alguma caverna encantada?... Bobagem! Eu vivo sempre imaginando coisas...

Tornou a agarrar o tronco do arbusto. Desta vez não precisou fazer força. O arbusto saltou, mal o tocou de leve, e Core perdeu o equilíbrio, caindo para trás. Ergueu-se risonha. Mas o riso não durou muito. No lugar de onde saíra o arbusto via-se agora um buraco. Era como se ela houvesse destampado uma caverna.

E caverna que tinha os seus moradores. Ouvia vozes, rumor de passos, troar de cascos, ruídos esquisitos, barulho de rodas. Pensou em fugir, mas o barulho aumentou e nem teve coragem de sair do lugar. Sentiu-se plantada no solo, como se tivesse raízes... E aí o espanto foi grande: o buraco se abriu e se alargou, e quatro grandes cavalos negros, soltando fumaça pelas ventas, nitrindo com fúria, irromperam por ele, puxando um esplêndido carro, uma biga toda de ouro, cujas rodas acabaram amassando margaridas e centáureas.

Imóvel de pavor, Core viu que dois cavalos, que mais pareciam dragões, puxando o seu carro fabuloso, bufando e agitando as crinas, evoluíam ao seu redor, como se lhe quisessem prestar uma homenagem. E no centro do carro, manejando as rédeas dos cavalos fogosos, viu um homem, de aspecto jovem, mas de rosto fechado e de aparência zangada, procurando defender os olhos dos raios do Sol, como se não estivesse acostumado à luz e estivesse chegando do Reino das Trevas.

— Como é que eu fui esquecer-me dos conselhos de minha mãe? Agora estou perdida...

Mas o homem fazia o possível para ser gentil e convidava-a para subir:

— Queres dar uma voltinha?

Core ouvira sempre de Deméter que nunca se deveria aceitar convites de desconhecidos, principalmente para passeios de carro, mesmo que fosse um carro de ouro, puxado por negros cavalos inquietos e de trote fogoso. E não estava gostando muito do jeito que a chamava, nem daquele tremor que agitava o solo.

De repente, Hades lançou enormes nuvens negras para esconder a face do Sol, e a Terra escureceu. Core ficou temerosa e começou a gritar:

— Mamãe! Mamãe! Socorro!

Mas a voz mal lhe saía da garganta. E Deméter devia andar muito longe, na sua infindável e generosa tarefa de ajudar os lavradores de toda a Terra, no seu eterno plantar e colher.

Fez um esforço enorme e, cada vez mais assustada e movida pelo seu medo infinito, gritou:

— Mamãe! Socorro! Socorro!

Foi inútil gritar. Ela não foi ouvida por Deméter nem aquele jovem altivo se mostrou preocupado, pois afinal era um rei: Hades, senhor do mundo inferior. Fez então parar os cavalos, desceu,e estendeu para moça um magnífico narciso, de uma cor exótica e fragrância inebriante.

Maravilhada ante a visão da flor que não conhecia, curvou-se para obtê-la. Num rápido movimento, Hades baixou o elmo sobre sua face, tornando-se assim invisível e  imediatamente agarrou a jovem com suas mãos poderosas,e, levando-a no colo, dirigiu-se em direção ao carro.

— Você é a filha de Deméter, não?

A menina confirmou.

— Não tenha receio, querida. Não vou te fazer mal algum. Que é que estava fazendo, sozinha no campo?

— Estava desobedecendo à minha mãe...

— E fazia o quê?

— Colhia flores.

— Ela lhe proibia de fazer isto? Pois vou te levar ao meu palácio. Lá encontrarás o mais belo jardim da Terra e do Céu. O jardim com todas as flores será teu...

— Quero minha mãe...

— Tuas flores serão feitas de pérolas, rubis, diamantes e todos os metias mais preciosos. — Afirmou o deus, sem se importar com as reclamações de Core.

— Quero ver minha mãe...

— Lá terás um rei aos teus pés...

— Mamãe...

— Não sabes que rei sou eu? Sou Hades, o rei dos diamantes e de todas as pedras do mais alto valor.

— Mamãe! Mamãe!

Hades levou-a para o carro nos braços. Em seguida, tocou os animais, que levantaram vôo. Core gritava, à medida que a estranha viagem começava.

Hades, sem lhe dar ouvidos, tocou sua carruagem em direção da fenda. Mas aquela cena foi presenciada por Ciane(Κυανῆ), uma de suas amigas, que havia ido procurá-la. Core gritou pelo seu nome, mas ela nada pôde fazer senão implorar:

— Espera, cruel divindade! Deixe-a em paz! — Gritava Ciane.

Hades, temeroso por ter sido descoberto, desviou seu caminho e tocou os cavalos para longe da fenda e desapareceu. E, para não deixar vestígios, ordenou que a fenda se fechasse. Nesse momento, uma vara de porcos que por ali passava, misturou seus rastros com os rastros dos corcéis de Hades. E, ao começar a fechar-se o abismo, os porcos nele caíram e morreram.

Quanto a Ciane, saiu correndo para avisar do rapto, mas suas pernas fraquejaram e, sem forças para continuar, dobrou os joelhos e esticou-se sobre a relva. Num instante, seu corpo foi transformado numa fonte, e jamais ela pôde revelar quem era o raptor da filha de Deméter.

Hades continuava a falar a Core das suas riquezas e não lhe dizia ser o senhor dos Infernos. Apenas tentava-lhe persuadir, até o ponto de lhe dizer que seu palácio era muito mais belo que o de Deméter...

— Quero minha mãe, leva-me de volta, por favor...

Hades pretendia torná-la sua rainha.

— Por favor...

Hades já estava ficando irritado. Ofereceu-lhe todas as glórias, honrarias e riquezas, além de estar-lhe proporcionando aquele passeio, e ela insistia em choramingar chamando Deméter.

— Eu tenho todas as riquezas. Sou o rei mais rico do mundo. No palácio maravilhoso só falta um riso, o teu riso, para encher de alegria os meus salões.

Mas Core continuava a chorar e gritar pela mãe.

Hades estugava cada vez mais seus garbosos cavalos, que mais voavam que galopavam, providos de asas como eram, dando voltas por entre as nuvens.

Num dado momento, olhando para baixo, Core conseguiu avistar Deméter, sua mãe, que se encontrava em Creta, com os camponeses do país.

— Mamãe!!!

Mas os cavalos de Hades tinham a velocidade do pensamento e já estavam muito além dos limites da luz do Sol. Deméter nada viu ou ouviu.

Começava a escurecer e rumores de trovoada e anúncios de tempestade era tudo o que se ouvia então. E quanto mais trevas desciam, mais alegria brilhava no tenebroso rosto daquele rei.

— Helios(Ἥλιος) não tem beleza, menina. A luz do Sol não tem majestade. Luz maravilhosa é a que encontrarás no meu reino. Luz de tochas encantadas, luz que resplandece refletida nos diamantes e no ouro das paredes do palácio que vais ver agora. Queres ver?

— Então eu poderei voltar depois?

— Isso se resolve depois. Olha, estamos chegando..

O carro, depois de atravessar densa quantidade de neblina negra, transpunha um imponente portão, e logo os cavalos se detinham, retidos pelas rédeas.

E um enorme cão negro de três cabeças, dócil e contente, surgiu a correr e esperava ansioso a descida de seu dono. Core, surpresa, arrancou um grito de sua garganta.

— Não te assustes, garota, ele pertence a mim. Vem, meu querido Cérbero(Κέρβερος)!

Hades acariciou, uma por uma, as três cabeças daquele cão de guarda, que para Core eram terríveis, apesar de vê-lo muito manso e amigo. Cérbero gania de satisfação, ao receber a carícia do dono, agitando a cauda.

Core aquietou-se. Mas qual não foi a sua surpresa ao olhar, com mais atenção, a cauda que o cachorro agitava. Era nada menos que um autêntico dragão, com olhos ferozes e garras de assustar qualquer gigante. Em seguida, reparou que, por baixo dos pelos do pescoço do animal, mexiam-se o que pareciam ser cobras, e de fato eram. Core assustou-se.

— Eu tenho medo, senhor, leva-me de volta...!

— Não temas, querida. Cérbero é o meu amigo mais fiel. Não faz mal a ninguém, a não ser àqueles que queiram entrar em meus domínios sem terem sido chamados... ou que pretendam sair sem permissão...

Hades estugou de novo os animais e, atravessando rios lodosos e flamejantes, pelo ar, o carro percorreu os jardins interiores de um belíssimo palácio.

— Olha quanta riqueza...

As pedras do caminho eram pedras preciosas.

Apesar de curiosos, os súditos de Hades não se aproximaram. Seguiram-no de longe, mal disfarçando sua curiosidade.

— Ela é tão diferente, tão linda! — segredou uma criatura pequena e gorda, de pele escamosa e olhos tortos.

— Ela não é uma alma! Tem um corpo humano! — cochilou uma velha tão magra que seus ossos apareciam sob a pele transparente.

— Não pode ser! Isto não é permitido! — sibilou algo parecido com um lagarto enorme, esticando uma língua fina e comprida.

Chegaram a uma ponte.

— Olha o rio que passa aí embaixo.

Ela olhou e sentiu frio na alma. Era um rio negro, lamacento, de marcha pesada.

— Esse é o Lete(Λήθη), nunca ouviste falar?

— É um rio muito feio. — Enojou-se ao reparar as nuances daquele asqueroso rio.

— Mas do meu particular agrado. Tem uma água estupenda, mesmo não parecendo. Basta um gole dessa água para fazer esquecer imediatamente todos os cuidados e tristezas. Se a provar, deixará de sentir saudade de sua mãe e nada haverá na sua memória que possa lhe atormentar e impedir a sua felicidade em meu palácio.

Isso dizendo, Hades chamou um de seus servos e ordenou-lhe que trouxesse, numa vasilha de ouro, um pouco da água do rio Lete.

Core atirou longe a água e o vaso de ouro. Não quis beber.

— Eu prefiro continuar infeliz e não esquecer minha mãe, que eu não devia ter desobedecido...

— Temos tempo.

Hades desceu do carro, tomou a menina em seus braços e conduziu-a até o vestíbulo, para além da porta do palácio, que estava amplamente iluminado pelo reflexo da luz nas pedras preciosas incrustadas nas paredes.

Core, gritou e bateu nas costa de seu raptor com os punhos fechados.

— Largue-me! Largue-me!

Ele apenas aumentou a pressão do braço que a carregava.

Chamou depois o chefe dos cozinheiros reais e ordenou-lhe que preparasse um banquete opulento e saboroso como nunca houvera outro, nem mesmo no Olimpo, que era onde viviam os deuses supremos.

— E não te esqueças de um cálice de ouro e diamantes, o mais belo que houver, com água do Lete, para a nossa linda visitante.

E olhou-a com um forçado carinho.

— Não é mesmo, queridinha?

Core, que não queria, por nada que lhe descem em troca, esquecer sua mãe e que preferia morrer de fome a ficar no reino de Hades, não respondeu. Mas jurou a si mesma, dentro de seu coração, que nada beberia e que nada comeria, por maior sede ou fome que tivesse, naquele palácio de falsas riquezas.

Mal sabia Core que, agindo assim, seria a sua salvação. Porque, segundo as leis antigas, todo aquele que entrasse numa terra ou nos domínios mágicos e ali comesse ou bebesse qualquer coisa, nunca mais voltaria ao seu lugar de origem.

Porém, Deméter, começou a sentir que sua filha lhe chamava. Começou a ouvir seu pedido tardio de socorro.

— Minha filha está em perigo! Eu sinto! Onde ela estará?

Fechando os olhos, Deméter começou a vasculhar o espaço em busca de respostas e viu, ao longe, um carro alado se perdendo nas distâncias do Céu, em meio a relâmpagos. Mas não tinha certeza de que Core estivesse naquele carro, que rumava para algum país distante.

Só que o coração divino de Deméter não se enganava, e lhe importunava. Continuava a sentir amargura, aquela certeza de que algo mau havia acontecido a Core. E, atrelando às pressas os seus dragões, que os humanos viam cavalos comuns e alados, em seu carro mágico, regressou numa velocidade de relâmpago. Teve o intuito de ir primeiro ao Olimpo, pensando que estivesse lá entre Zeus e os deuses.

— Minha filha! Minha filha!

Ninguém sabia dar notícia. Os deuses do Olimpo alarmaram-se com sua ausência, sobretudo Zeus, o pai de Core.

Deméter, então, correu para o lugar aonde havia deixado a filha antes de partir. Foi para Hena, na Trinácria. Entrou no templo, não a encontrou, e foi procurar as Oceânides na praia.

— Onde está minha filha?

Não sabiam. Todas sabiam informar, apenas, que Core afastara-se, durante um alegre folguedo.

— Ela prometeu-nos grinaldas e foi colher flores nos campos. Mas não voltou...

— Como pôde acontecer isto? — exclamou uma delas — Core estava aqui agora mesmo!

— Sumiu! Foi tragada pela Terra!

— Não diga bobagens! Ela tem que estar por aqui!

Desconfiada, a princípio, de que as Ninfas a tivessem levado para o fundo do mar, Deméter viu que havia sinceridade nas suas palavras.

— Em que direção minha filha saiu?

As Ninfas apontaram para o caminho certo.

— E onde estão as filhas de Aqueloo, que ficaram de vigiar e cuidar de minha filha?

Deméter avistou-as se divertindo e despreocupadas, como se nada houvesse acontecido. Deméter, furiosa, mudou-lhes o aspecto, transformando-as em aves de rapina. Como eram Ninfas do mar, filha de um deus-rio, foram mudadas em aves aquáticas, conhecidas então pelo nome de Sereias(Σειρῆνας), que, assustadas, levantaram vôo em busca de Core. Só assim, as monstruosas Aquelóias poderiam ser perdoadas e voltariam ao seu aspecto original. No entanto, depois de muito vagarem, desistiram e pousaram na primeira ilha rochosa que encontraram, e lá permaneceram. Eram as ilhas Antemusas.

E um Oráculo predisse às Sereias que elas viveriam tanto tempo quanto pudessem deter os navegantes à sua passagem; mas desde que um só passasse sem para sempre ficar preso ao encanto das suas vozes e das suas palavras, acompanhadas de seus instrumentos musicais — uma tocava lira, outra duas flautas e a terceira gaitas campestres —, elas morreriam. Por isso, essas feiticeiras, sempre em vigília, não deixariam de deter pela sua harmonia todos os que chegassem perto delas e que cometessem a imprudência de escutar as suas vozes melodiosas. E os infelizes, que se deixassem levar pelo encanto e pela sedução das Sereias, não pensariam mais no seu país, na sua família, em si mesmos; esqueceriam de beber e de comer, e morreriam famintos e sedentos.

Deméter então se manteve em silêncio, olhando em volta através da cortina de lágrimas que envolvia sua visão, fazendo com que as plantas e as flores parecessem  vultos coloridos e disformes. E andando pelos campos, interrogava todos os camponeses que encontrava, e muito pouco tinham a dizer. Alguns a tinham visto com o seu avental cheio de flores, que ela sabia muito bem escolher.

— Ela seguia na direção daquela colina.

Continuou procurando. A certa altura, viu no chão todo um amontoado de flores.

— Aqui algo aconteceu...

Continuou. Mais além, novo feixe de flores lindamente escolhidas. Procurou mais adiante, nova colheita de flores caídas no chão.

— Isso está muito esquisito.

Deméter já chorava de dor, e seu coração apertava-se cada vez mais.

Súbito, viu um arbusto arrancado, ainda carregado de flores, em meio a margaridas e centáureas pisoteadas. Deméter nunca vira flores iguais às daquele arbusto.

— As flores deste arbusto não são das minhas. É lindo, mas parece um arbusto venenoso e mau.

Algo lhe dizia que aquele arbusto tinha qualquer coisa com o destino da filha. Mas nada em volta apontava qualquer indício. Nem sequer a cavidade pela qual saíra Hades no seu carro dourado; havia desaparecido.

Procurou em vão pelo lugar onde havia sido arrancado aquele arbusto, e nada encontrou, a não ser uma pequena fonte onde água bebeu e, por um instante, lembrou-se de Hades, que um dia fôra ao Olimpo a fim de pedir sua filha em casamento. Porém, assim que se afastou da fonte, deixou de lado essa possibilidade, pois jamais poderia aceitá-la. Mas pôs no seu seio uma das flores malditas, como lembrança, talvez a última que lhe ficava, da filhinha querida.

No submundo, Hades deitou Core em seu leito e curvou-se sobre ela. A mesma deu outro grito e escorregou para a cabeceira. Ele estendeu o braço musculoso e tocou-a de leve com a mão enorme. A moça se encolheu.

— Não ouse me tocar! — falou, com raiva — Tenho nojo de você, tenho horror deste lugar! Saia, vamos, vá para bem longe de mim!

Ele se levantou e andou pelo quarto, sempre com os olhos pregados nela.

— Não adianta, Core, é assim que lhe chamavam não é? Você agora é minha e nem Zeus a arrancará daqui. Será bem melhor para você acostumar-se com esta ideia.

Core mergulhou a cabeça entre as mãos e chorou muito. Aos poucos, suas lágrimas secaram e ela ergueu os olhos vermelhos e inchados.

— Sei onde estou e sei quem é você, meu tio. Sei também que não poderei fugir daqui. Já que não tenho outro jeito, procurarei aceitar tudo isto com tranqüilidade. Deixe-me conhecer melhor seu reino. Hades estendeu o braço, ajudando a moça a se levantar.

— Sim — disse ele — conheça bem o meu reino antes de tornar a repetir que tem horror a ele.

Em passos largos chegou à porta do quarto e fez um sinal chamando alguém. Um pequeno gênio, mais parecendo uma criança deformada, aproximou-se, desconfiado.

— Pentos(Πενθος) — disse Hades — acompanhe Core e mostre-lhe o mundo subterrâneo.

Pentos estendeu para ela a mãozinha retorcida.

— Venha, moça, venha comigo. Pentos conhece bem o mundo inferior.

Core o acompanhou, o olhar assustado espiando em volta.

Mais adiante, perguntou:

— Afinal, quem é você?

Ele fez uma careta.

— Sou o Gênio do Desgosto. Minha função é observar o culto dos mortos. Quando a família do morto chora muito e se lamenta, envio a ela uma grande porção de desgostos.

— Mas por que faz isto? Se eles já sofrem a perda do ente querido!

— A morte é coisa natural — explicou Pentos. — Sendo assim, para que chorar? Já que tanto choram pelo inevitável, que fiquem então com mil desgostos!

Caminharam um pouco e chegaram ao lugar onde a barca de Caronte atracava com seus passageiros. Core deu um pulo para trás, quando viu novamente Cérbero.

— Por que tem medo? — perguntou Pentos — Ele é o guardião da umbral. Quem o teme jamais vencerá o terror da morte e será sempre prisioneiro da umbral. Olhe-o de frente, Core!

As pernas da moça tremiam, mas ela olhou. Horrorizada, viu as três cabeças do cão monstruoso fixarem nela olhares penetrantes. A cauda de dragão balançava, lentamente, e parecia sempre pronta a enroscar-se nas pernas do incauto que se aproximasse demais. Ela suspirou, prendeu a respiração e olhou nos olhos do cão. Aos poucos, a cauda se acalmou e o olhar das três cabeças desviou-se dela. Soltou a respiração e passou por Cérbero, sem sentir nenhum receio.

E caminharam entre seres monstruosos, entre as almas e as mil penas e sofrimentos que povoavam o mundo subterrâneo. Core, aos poucos, foi perdendo o medo. Suas pernas já não mais tremiam. Uma mulher descabelada, de nariz adunco e vestida de andrajos, parou à sua frente.

— O que faz aqui, criatura da superfície? Seu lugar não é no mundo inferior.

Core a olhou de cima a baixo.

— Meu lugar não é aqui, mas já que aqui estou, mesmo contra a minha vontade, pretendo saber sobre este mundo, pois não suportaria viver em um local que não conheço.

A velha deu uma risada.

— É mesmo? Pois acho que aqui apenas sofrerá a carência dos afetos daqueles que deixou na Terra.

— Não é bem assim — retrucou Core. — Amo minha mãe e todos os que conviviam comigo. Minha imprudência arrastou-me para cá. Fascinada por uma flor, curvei-me demais sobre o abismo e fui trazida à força. Agora procuro um meio de viver em paz neste mundo profundo, sem sofrer por aquele de onde vim e conservando dele apenas uma doce lembrança.

— Conseguirá isto, minha jovem? Todos os que aqui chegam lamentam o mundo que deixaram até beberem da água do rio do esquecimento. Quer um pouco dessa água, menina?

— Não! —  exclamou a moça — Não quero me esquecer de nada. Preciso me lembrar de como brilha a luz, para aprender a conviver com as trevas. Se não for assim, sinto que serei engolida por elas.

A velha se afastou, resmungando.

— Quem é ela, Pentos? — perguntou Core.

— É Pênia(Πενία), a Carência, a Pobreza — respondeu ele.

— Pobre mulher — sussurrou a moça — Ainda não percebeu que é a pobreza do espírito que traz a carência à alma. Há que se buscar a plenitude mesmo no mundo das trevas.

Um lagarto aproximou-se, ameaçador. A língua fina se esticou e tocou o braço nu de Core. Ela estremeceu, mas não se desviou de seu caminho.

— Vamos, Pentos, mostre-me mais sobre seu mundo.

Andaram pelos charcos. As almas sofredoras estendiam as mãos contorcidas e tocavam as vestes da moça. Mas este toque não maculava a brancura de seu manto. E Core caminhava sobre a lama imunda, mal roçando no charco os pés descalços.

— Ela não afunda! — gritavam as almas. — Ela não mergulha no lodo, como nós!

Pelo caminho, um rapaz sisudo a fez parar.

— Onde pensa que vai, menina?

Ela procurou sorrir.

— Vou a todos os cantos deste mundo interno.

— E para quê? — perguntou ele, apertando os olhos.

— Para conhecê-lo e aprender a viver nele em paz.

Ele torceu a boca num sorriso sarcástico.

— Ninguém vive em paz no mundo inferior. Aqui só existe o ódio, a vontade intensa de desagregar o mundo e fazê-lo voltar ao Caos.

Ela o olhou com curiosidade.

— Será que não existe o Amor em nenhum recanto deste reino das profundezas?

Ele ficou furioso.

— Amor! Você só pode estar louca! Quem tem Amor neste mundo infernal?

Ela fixou em seu rosto irado seus lindos olhos azuis.

— Eu tenho.

E deixou que um fluxo de Amor puro escapasse de seu peito e envolvesse o rapaz. Ele foi embora, quase correndo.

Pentos deu uma gargalhada.

— Sabe quem é ele, Core? É Anteros(Ἀντέρως), o Irmão Contrário de Eros. Anteros é o Ódio, a Desordem, a Desunião.

Core suspirou fundo. Sentia que à medida que caminhava ia se tornando mais segura. O mundo interno já não mais a assustava e seus habitantes aprenderam a não perturbá-la com tolas ameaças. Seus passos se tornaram firmes.

De repente, sentiu uma vontade intensa de voltar a Hades e de, junto com ele, assumir o reinado daquele lugar imenso e interno, que já aprendera a conhecer e aceitar.

Pentos leu seus pensamentos e conduziu-a à entrada de uma gruta.

— Agora, moça, terá que prosseguir sozinha.

Core não pensou duas vezes. Esgueirou-se pela fenda estreita que, logo adiante, abriu-se num largo espaço circular. No meio dele, Hades a esperava, despido de seu manto, de pé ao lado de um altar sacrificial.

O solo era todo um braseiro vivo, que pulsava e cuspia para o alto uma lava incandescente. Core não teve medo. Deixou cair suas vestes muito brancas e deu o primeiro passo sobre as brasas. O fogo não a queimava, apenas tingia seu corpo nu com um reflexo avermelhado.

Passo a passo, chegou à frente de Hades. Em silêncio, ajoelhou-se e reverenciou a máscula nudez do deus do mundo inferior. Ele estendeu a mão, fez com ela se levantasse e depois deitou-a sobre o altar. Curvou-se sobre ela e cobriu-a com seu corpo.

Core recebeu nos lábios seus beijos ardentes e sentiu-o escorregar de mansinho para dentro de si. Fechou os olhos e abandonou-se àquela doce integração com o deus do mundo inferior. Quando abriu os olhos, viu três vultos encapuçados ao lado altar.

Um deles ajudou-a a se levantar e a envolveu num manto negro, todo bordado com fios de ouro. O segundo ser prendeu uma tiara de pedras preciosas em torno de sua testa e o terceiro entregou a ela um cetro de ouro.

E Core se transformou definitivamente em Perséfone(Περσεφόνη), a esposa de Hades, a senhora do Mundo Inferior...

Nenhum comentário:

Postar um comentário