ADÔNIS(Άδωνις). Por Jodeee. |
O tempo corria, e Adônis(Άδωνις), filho do rei Cíniras(Κινύρας) com sua própria filha Mirra(Μύρρα), se transformava no rapaz de beleza mais exuberante que até então havia pisado o solo do mundo dos vivos. Pessoas acorriam, curiosas, de longe. Vinham de toda parte apenas para admirar seu porte, seus movimentos, seu modo de olhar e de sorrir.
Ninguém sabia dizer com certeza se ele, Adônis, era um deus ou um homem comum. Os mais velhos o admiravam. Os jovens o respeitavam, reverenciando-o. As moças solteiras suspiravam por ele só de ouvirem seu nome ser pronunciado:
— Tem o andar mais gracioso que o de um príncipe...
— Seus cabelos parecem cachos de ouro puro...
— Quem será a mulher abençoada que ele escolherá?
— Será um deus?
— Ou será um simples mortal, cheio de qualidades?
— Ninguém sabe. É apenas Adônis.
E quis o Destino que a própria deusa do amor e da beleza acabasse cruzando os caminhos de Adônis. Um dia, das alturas do Olimpo, Afrodite(Ἀφροδίτ) o viu colhendo maçãs bem cedo, antes do orvalho secar.
— Quem será esse rapaz? Nunca vi ninguém mais belo...
Eros(Ἔρως), que estava com ela, deu uma olhada rápida. Sem responder, voltou-se novamente para seus afazeres, pois estava polindo suas flechas.
Afrodite, percebendo que o seu garoto estava com ciúmes, abraçou-o, enternecida.
— Vamos, deixe de ciúmes! É apenas um belo rapaz, mas nenhum é tão belo quanto o meu filho!
Ao tomá-lo nos braços, porém, a deusa acabou ferindo-se com a flecha que ele segurava, e ela sentiu a picada.
— O que foi, mamãe? — Indagou Eros com o súbito afastamento de Afrodite.
— Não foi nada, meu filho, continue o seu trabalho...
Foi um enorme choque para ela, que sentiu uma incontrolável vontade de conhecer aquele mortal. Então disse a Eros, seu filho:
— Venha, meu filho, vamos dar um passeio pelo mundo dos homens.
Eros voou a preparar suas coisas, em especial seu arco e suas flechas encantadas, enquanto perguntava:
— E qual parte do mundo dos mortais vamos visitar?
— Eu quero respirar um pouco o ar puro das montanhas da Fenícia... Venha.
Logo que chegaram, a aparência de Adônis impressionou Afrodite. Ela, oculta por detrás de um teixo, alisava distraidamente a casca rugosa da árvore, de um intenso marrom avermelhado. Seus olhos estudavam o corpo do jovem, cujas formas ressaltavam por entre a fina túnica que o cobria.
Então, Adônis, percebendo que uma de suas sandálias estava desamarrada e, após amarrá-la, num gesto viril, estirou os dois braços para o alto para continuar o seu trabalho, colhendo maçãs. Os cabelos das axilas do jovem agitaram-se levemente sob a brisa que soprava. A deusa, sem poder conter-se mais, deixando Eros a brincar pelos bosques, saiu lentamente do esconderijo e procurou aproximar-se de Adônis. Displicente, comentou:
— Posso comer uma? Senti de longe o perfume dessas maçãs e não consegui resistir...
Adônis, gentil como era com todos, virando-se em direção da voz, respondeu um tanto impressionado com a beleza extraordinária daquela mulher:
— Uma apenas? Posso colher quantas maçãs Você quiser...
— Mesmo?
— As frutas existem no mundo para o deleite de quem nele estiver...
Afrodite provocava:
— Mortais... E imortais?
— A fome e o prazer valem para todos da mesma forma, não é assim?
A resposta de Afrodite foi um sorriso que quase colocou o jovem de joelhos.
— Sou Adônis.
— Pelo seu porte, é um caçador, não é mesmo?
— Sim, eu sou.
— Vem sempre caçar por aqui?
— Sempre não, mas é meu bosque preferido.
E Adônis, mesmo impressionado pela beleza da moça, com freqüência desviava o olhar. Na verdade, era muito dedicado à caça, e tinha pouco interesse pelas lidas do amor. Parecia que, cada vez mais, ele se afastava, dando pouco caso.
— Você não é um deus, é?
— Não, moça, na verdade eu...
— Como pode ter a beleza de um deus e não ser um deles?
Subitamente, antes que ele se voltasse, Afrodite pisou nos cordões da outra sandália de Adônis.
— Olha, a sua outra sandália também está desatada!
Adônis fez menção de abaixar-se.
— Vamos, coloque o pé sobre a pedra, outra vez!
— Por favor, moça, deixe que eu...
— Vamos, Adônis, eu amarro para você!
O jovem apoiou o seu pé esquerdo sobre a pedra. Colocando-se à frente, a deusa inclinou-se, tomando as duas tiras soltas em seus dedos. De cabeça baixa, seus longos cabelos roçavam de maneira involuntária a cintura de Adônis. Foi a sua vez de ser docemente surpreendida. O jovem, no seu orgulho viril de caçador, achava que já cedera demais às audácias da estranha e tomou delicadamente as tiras de sua mão.
Porém, nesse mesmo instante, Éros, protegido pelas árvores, sem saber que sua mãe por ali se encontrava, disparou uma flecha certeira no coração de Adônis, e em seguida voltou a brincar. O caçador atingido percebeu, então, que estava diante da mais bela das deusas. E emendou:
— Mortais inclinam-se diante dos deuses, e não o contrário.
— Por que tem de ser sempre assim? Deixe-me reverenciar também a você.
Adônis já ouvia falar que Ares(Ἄρης), o implacável deus grego da guerra, amava uma belíssima deusa, Afrodite, e sentia-se extremamente ofendido pelo flagrante que Hefesto(Ἥφαιστος) havia-lhe aprontado. E reconheceu-a. Mal sabia ele que Áres já o conhecia.
O efeito da seta de Éros começava a fazer sentir-se, porém, erguendo-a do chão, suavemente, Adônis, com uma repentina visão, teve tempo para pensar:
— Não pretendo passar a eternidade amarrado a uma roda giratória de moinho, ou ser torturado nas profundezas do Hades, pelo atrevimento de cortejar uma deusa.
Adônis conhecia as sagas dos deuses gregos, por isso sabia de seu limite, e quis dizer algo, mas um beijo de Afrodite apagou todas suas palavras e borrou todos os seus pensamentos. Sentiram uma ardente e irresistível atração um pelo outro. Viveram dias e noites ininterruptos de doce amor, e já sabiam que não conseguiriam mais separar-se. Passavam o tempo todo juntos. Apreciavam os passeios por entre as árvores da floresta das alturas da montanha e os banhos de mar nos dias em que o calor abrasava as praias do litoral fenício.
A partir de então a deusa passou a descer todos os dias de sua morada celestial para trocar carícias e beijos com o belo amante. E, aninhada em seus braços, prometia:
— Vou fazer de você um deus...
Feliz e apaixonada, Afrodite abandonou de vez o monte Olimpo, a morada dos deuses , e desceu para habitar o mundo dos mortais, em país estranho entre deuses estranhos, assim decidida. Foi morar com Adônis numa aconchegante casinha de pedra em meio à floresta.
No entanto, Afrodite havia deixado no Olimpo seu amante Ares. O Deus da Guerra era demasiadamente ciumento e perigoso. Principalmente depois de perceber o que estava acontecendo entre Adônis e Afrodite, foi tomado por um ciúme desesperado. E, sem saber muito bem o que fazer, evitando demonstrar o que sentia ao irmão Hefesto, decidiu confidenciar com o senhor do Olimpo, que levava a fama de infiel, mais do que ninguém:
— Esse rapaz vai pagar caro por sua ousadia...
— Se quer vingança, pese bem sua decisão, Ares...
— O belo jovem gosta de se apaixonar, não é mesmo? Pois vou lhe fazer a vontade e estimular nele uma outra ilimitada e incontrolável paixão...
— Mais uma vez, Ares, eu o aviso: pense antes de qualquer ação. Afrodite pode abandoná-lo para sempre... Não se arrisque a perdê-la...
Zeus(Ζεύς) dizia essas coisas, mas, no fundo, como era o sábio dos sábios, compreendia o alcance de suas próprias palavras. Pedir a Ares para pensar antes de decidir? Dizer ao rei da guerra, a quem a luta era o impulso que o movia, para evitar o risco? Zeus, mais do que ninguém, sabia que não podia fazer nada para controlar paixões, viessem de onde quer que viessem. O próprio Zeus tinha dificuldades para controlar seus impulsos, sempre atraído por fogosas Ninfas ou por sedutoras mortais...
Ares, então, bradou com força, para que todos os deuses do Olimpo pudessem ouvir o que dizia com o rosto ardendo, incendiado pelo ciúme — isso porque sabia que Hefesto não se encontrava no Olimpo, naquele momento.
— Adônis, insolente filho de uma árvore! Eu o condeno, a partir de hoje, a dividir o amor de Afrodite com o amor, não menos intenso, pela caça e por seus perigos!
Adônis transformou-se, com o tempo, num homem forte, alto, sempre muito ativo, com energia de sobra. Seu rosto era tão belo que parecia ter sido esculpido, possuindo testa, olhos, nariz e queixo absolutamente perfeitos. Seus cabelos loiros lhe escorriam pelos ombros firmes.
Caçar, no fundo, não deixava de estar entre as coisas que ele mais apreciava fazer. Porém, submetido inevitavelmente à influência maligna e vingativa do deus Ares, passou a ser um caçador obstinado. Não era o mesmo Adônis de antes. Ficou irreconhecível em seu novo comportamento. À sua passagem, os habitantes da região comentavam entre si a brusca mudança que havia sofrido:
— Quem olha para ele pode até pensar que caçar animais é a única coisa que existe para ser feita nesta vida... — Comentavam as apaixonadas
Os anciãos assim diziam:
— Ele agora vive unicamente voltado para esse objetivo. Nem se alimenta mais direito, e mal dorme à noite, porque todas as horas são horas boas para caçar...
— Pobre rapaz, vai definhar se continuar dedicando todo seu tempo à caça...
Afrodite acompanhava seu amado dia e noite, sob o Sol e sob as estrelas, com chuva ou céu limpo. Por isso, ela, que sempre o estava vigiando à distância, quando não podia estar presente ao seu lado, foi a primeira a notar a repentina transformação sofrida por Adônis.
Agora ele enfrentava, de peito aberto e olhar frio, os perigos mais terríveis, sem qualquer sombra de hesitação. Coisas que antes Adônis procurava evitar a todo custo começaram então a ser corriqueiras: ele cruzava águas profundas e geladas a nado, atrás de pegadas de ursos; escalava torres imensas de rocha escorregadia perseguindo águias; passava longas noites em vigília, espreitando as trilhas e os esconderijos dos lobos da montanha. Afrodite o aconselhava:
— Meu querido, não deve queimar sua força e sua juventude entregando-se cegamente a isso. Tome muito cuidado. Os perigos desta terra nem sempre se mostram com clareza diante de nossos olhos.
A deusa mal podia imaginar nesse instante o quanto de verdade e de profecia continham essas suas doces palavras. De fato, perigos invisíveis rondavam Adônis, embora não o visando como caçador, e sim como uma atraente presa.
Acontece que a irresistível beleza de Adônis havia também despertado a atenção de outra deusa: Perséfone(Περσεφόνη), a rainha do mundo subterrâneo. Dona de uma beleza melancólica e misteriosa, soberana do mundo infernal que apenas se revelava aos olhos dos mortais quando eles atravessavam o Estige(Στύξ), que com suas águas caudalosas separava os vivos do mundo dos mortos, ao qual eram levados, no fim de seus dias.
Um dia, durante um passeio pela montanha, fora dos limites de seu reino, já que houvera chegado a época em que lhe fora permitido afastar-se, Perséfone viu Adônis em companhia de Afrodite. Ambos riam e dançavam por entre as árvores, felizes. De repente, Afrodite disse:
— Querido Adônis, quero que me prometa uma coisa...
— O que quiser. Peça, e eu prometerei.
— Prometa que vai parar de correr atrás de animais perigosos, de uma vez por todas. Meu coração não suporta tamanha carga...
E, deitando a cabeça sobre o colo da deusa, disse-lhe:
— Está prometido, Afrodite.
Enquanto isso, Eros, sempre imprevisível, e sempre pronto para divertir-se com suas próprias traquinagens, estava escondido entre as pedras, abrigado à sombra de um cedro portentoso.
Perséfone olhava o feliz casal e não percebia que era espreitada por Eros. Este, instintivamente, desferiu uma certeira flechada. A pontada fez-se sentir no mesmo instante no peito de Perséfone: ela se apaixonou sem remédio, à primeira vista. Adônis não a vira, mas ela prometeu a si mesma, decidida:
— Adônis, belo e gentil Adônis... Um dia você será meu, mesmo que eu me veja obrigada a dividir seu amor com Afrodite...
E, depois de permanecer por alguns instantes pensativa, observando o casal que se divertia à distância, ela acrescentou, continuando a conversar consigo mesma:
— E você, deusa do amor e da beleza, aguarde o que virá. E aproveite bem esses maravilhosos momentos, enquanto puder...
Atrás de um sorriso sombrio e fascinante, os dentes de Perséfone rangiam enquanto ela retornava a sua morada, no Mundo dos Mortos. Não podia demorar-se por muito mais tempo em seu passeio naquela região do mundo superior, já que seu marido, Hades(Άδης), não permitia, exceto na época prevista para o seu retorno para a casa de sua mãe, Deméter(Δήμητρα). Perséfone, na verdade, não se preocupava muito com seu marido, e não vacilava quando se deparava com alguma ocasião que lhe permitisse engendrar qualquer tipo de vingança, e pensava:
"Como esquecer que, antes de ser meu marido, ele foi meu sequestrador? Como apagar da memória aquele fatídico dia em que eu, ainda uma menina sonhadora, vi Hades surgir em seu resplandecente carro dourado puxado por dois cavalos negros, raptando-me para viver com ele nas entranhas da Terra para todo o sempre?"
Adônis, descumprindo a promessa, continuava intensamente obcecado pela arte da caça. A deusa Afrodite apenas tentava aconselhá-lo. Ela já havia compreendido ser impossível fazê-lo mudar de ideia, percebendo que só podia limitar-se a avisá-lo para que tomasse muito cuidado, pois estava apreensiva e preocupada:
— Você poderia caçar corças, lebres, cabras selvagens... Querido, ouça-me. Seja bravo com os tímidos. A coragem contra os corajosos não é segura. Evite se expor ao perigo e ameaçar minha felicidade. Não ataque os animais que a Natureza armou. Não aprecio sua glória ao ponto de consentir que a conquiste expondo-se assim. Sua juventude e a beleza que me encanta não enternecerão os corações dos leões e dos rudes javalis. Pense em suas terríveis garras e em sua força prodigiosa! Odeio toda a raça deles.
Mas a paixão estimulada pelos poderes do deus Ares era mais forte. Adônis sentia-se atraído pela caça mais perigosa e difícil: pelos lobos, pelos ursos, pelos pumas que infestavam as montanhas e florestas da Fenícia e da Síria.
Numa bela manhã, que anunciava a chegada do outono, as primeiras folhas das árvores caíam e o vento gelado já ensaiava suas primeiras rajadas, Adônis e Afrodite descansavam à beira de um regato de águas azuis. Haviam passado a manhã despreocupados, compartilhando agradáveis momentos entre banhos de cascata e brincadeiras dentro d’água com saltitantes peixinhos.
Ares, que tudo acompanhava das alturas do Olimpo, pressagiava um dia cheio de problemas, entre gargalhadas:
— Vamos caçar! Vamos caçar, estúpido filho de uma árvore! Vamos caçar!
Afrodite adormecera, e Adônis estava prestes a acompanhá-la no doce sono quando ouviu o ganido de seus cães, chamando-lhe a atenção. Adônis levantou-se e foi averiguar, quando notou um vulto agitando a espessa folhagem que os circundava. E sussurrou, preocupando-se em não elevar o tom da voz para evitar que Afrodite despertasse:
— Quem está aí?
Movido mais que tudo por seu instinto, e esquecido de ter prometido a Afrodite que evitaria caçadas perigosas, ele se ergueu com cuidado. Apanhou seu arco dourado, e também um punhado de flechas. Caminhou um pouco e voltou a perguntar, agora com mais força na voz:
— Quem está se escondendo aí? Por que não aparece?
Medindo os próprios movimentos, Adônis procurava distinguir aquilo que tanto podia ser uma pessoa como um animal. Apenas lhe era possível enxergar uma inquieta massa escura, protegida pela vegetação. Seria um ladrão? Um urso? Uma pantera? Ou seria um ente monstruoso vindo dos Infernos?
Nada se ouvia, nem mesmo os movimentos naturais do vento e da água. Até que, subitamente, o vulto passou a deslocar-se com rapidez. Adônis, correndo até o canil, libertou os seus animais e decidiu persegui-lo com longas e lentas passadas, afastando-se assim, cada vez mais, do local onde Afrodite continuava mergulhada no mais profundo sono. Pela terceira vez, Adônis perguntou:
— Quem está aí? Por que não pára de fugir e se esconder? Apareça!
De repente, ecoou pela mata um grunhido pavoroso. Um som que Adônis conhecia muito bem, porque era bastante familiar a todos os caçadores experientes do país. Adônis soltou os cães, que saíram velozmente em perseguição da caça. O caçador saiu cambaleante, tentando acompanhar os seus cães, até que chegou ao local onde eles cercavam um possível esconderijo.
Um ruído surdo escapou do interior da toca: o maior de seus cães havia descoberto uma entrada lateral e entrado por ela, o que obrigaria a fera a sair pela entrada principal, guarnecida pelos demais cães.
Ele procurou preparar rapidamente seu arco, e logo vislumbrou o corpo de um gigantesco javali negro. Viu, em primeiro lugar, as presas afiadas refletindo ao Sol. O reflexo teve o efeito de um relâmpago: foi o suficiente para fazer com que o tiro de Adônis se perdesse. A flecha rasgou os ares e foi perder-se em algum lugar. Os cães afastaram-se. E Adônis pôde ver o animal por inteiro, que surgia furiosamente com seus olhos vermelhos. De um único salto, o javali, com uma agilidade fenomenal, partiu veloz na direção do caçador. Adônis só teve tempo de dizer uma única palavra, enquanto procurava ajustar uma segunda flecha ao arco:
— Demônio!
E a fera saltou sobre Adônis, num só golpe, que não gritou, mas caiu em silêncio. As presas, rígidas como uma lança, enterraram-se no fundo de seu peito, tão fundo, que o javali ainda debateu-se por alguns instantes antes de se desvencilhar e desaparecer, levando atrás de si os cães enfurecidos.
No exato momento em que a tragédia se desvencilhava, Afrodite acordou num sobressalto e levantou-se mais do que depressa. Ela não havia percebido qualquer ruído estranho, mas sentia em seu peito oprimido que deveria estar acontecendo alguma coisa de ruim. E não demorou a descobrir. Notando a ausência inexplicável de Adônis, saiu gritando, atordoada, sem saber qual direção tomar:
— Adônis! Adônis! Meu querido!
Após muitas e desorientadas corridas de um lugar para outro, Afrodite, há muito esquecida de ser uma deusa, finalmente conseguiu avistar Adônis: lá estava em um pequeno desfiladeiro ao lado do regato de águas azuis, pouco abaixo do local onde eles descansavam momentos antes. Ele estava encostado numa árvore, reclinando o corpo ferido.
— Adônis, meu amor, o que houve?
Ele estava com o ventre todo manchado de sangue, e, num último esforço, balbuciou, enquanto recostava a cabeça sobre o ombro de sua amada, que o amparava:
— É o meu fim...
Afrodite conseguiu chegar a tempo de ver o último olhar e sentir o derradeiro suspiro de seu amado:
— Adônis! Adônis! Oh, maldição!
Afrodite, desesperada ao ver seu amante ser dilacerado pelas presas do animal, correu para salvá-lo. Um espinho feriu seu pé e o sangue que jorrou tingiu de vermelho as rosas, que até então eram brancas. Enlouquecida de dor, rasgou seu véu e procurou aflita interromper o fluxo de sangue que jorrava daquele peito já sem vida. Não havia mais nada a ser feito.
Afrodite voltou os olhos para o Céu, buscando acusar as Moiras(Μοῖραι), que cortavam o fio de vida de seu amado:
— Seu ato, porém, constituiu um triunfo parcial. A memória de meu sofrimento perdurará, e o espetáculo da morte de Adônis e de suas lamentações será anualmente renovado. Seu sangue será mudado numa flor; este consolo ninguém pode negar-me!
O sangue de Adônis banhava a terra. E Afrodite espalhou néctar sobre ele, levantando bolhas do solo. Ali, naquele mesmo local, onde ele foi enterrado, cresceriam, meses depois, as anêmonas, as primeiras flores da primavera, de vida curta, porém. E assim a anêmona passou a brotar e enfeitar os meses da primavera. Depois morria e se recolhia às entranhas da terra.
— Não foi nada, meu filho, continue o seu trabalho...
Foi um enorme choque para ela, que sentiu uma incontrolável vontade de conhecer aquele mortal. Então disse a Eros, seu filho:
— Venha, meu filho, vamos dar um passeio pelo mundo dos homens.
Eros voou a preparar suas coisas, em especial seu arco e suas flechas encantadas, enquanto perguntava:
— E qual parte do mundo dos mortais vamos visitar?
— Eu quero respirar um pouco o ar puro das montanhas da Fenícia... Venha.
Logo que chegaram, a aparência de Adônis impressionou Afrodite. Ela, oculta por detrás de um teixo, alisava distraidamente a casca rugosa da árvore, de um intenso marrom avermelhado. Seus olhos estudavam o corpo do jovem, cujas formas ressaltavam por entre a fina túnica que o cobria.
Então, Adônis, percebendo que uma de suas sandálias estava desamarrada e, após amarrá-la, num gesto viril, estirou os dois braços para o alto para continuar o seu trabalho, colhendo maçãs. Os cabelos das axilas do jovem agitaram-se levemente sob a brisa que soprava. A deusa, sem poder conter-se mais, deixando Eros a brincar pelos bosques, saiu lentamente do esconderijo e procurou aproximar-se de Adônis. Displicente, comentou:
— Posso comer uma? Senti de longe o perfume dessas maçãs e não consegui resistir...
Adônis, gentil como era com todos, virando-se em direção da voz, respondeu um tanto impressionado com a beleza extraordinária daquela mulher:
— Uma apenas? Posso colher quantas maçãs Você quiser...
— Mesmo?
— As frutas existem no mundo para o deleite de quem nele estiver...
Afrodite provocava:
— Mortais... E imortais?
— A fome e o prazer valem para todos da mesma forma, não é assim?
A resposta de Afrodite foi um sorriso que quase colocou o jovem de joelhos.
— Sou Adônis.
— Pelo seu porte, é um caçador, não é mesmo?
— Sim, eu sou.
— Vem sempre caçar por aqui?
— Sempre não, mas é meu bosque preferido.
E Adônis, mesmo impressionado pela beleza da moça, com freqüência desviava o olhar. Na verdade, era muito dedicado à caça, e tinha pouco interesse pelas lidas do amor. Parecia que, cada vez mais, ele se afastava, dando pouco caso.
— Você não é um deus, é?
— Não, moça, na verdade eu...
— Como pode ter a beleza de um deus e não ser um deles?
Subitamente, antes que ele se voltasse, Afrodite pisou nos cordões da outra sandália de Adônis.
— Olha, a sua outra sandália também está desatada!
Adônis fez menção de abaixar-se.
— Vamos, coloque o pé sobre a pedra, outra vez!
— Por favor, moça, deixe que eu...
— Vamos, Adônis, eu amarro para você!
O jovem apoiou o seu pé esquerdo sobre a pedra. Colocando-se à frente, a deusa inclinou-se, tomando as duas tiras soltas em seus dedos. De cabeça baixa, seus longos cabelos roçavam de maneira involuntária a cintura de Adônis. Foi a sua vez de ser docemente surpreendida. O jovem, no seu orgulho viril de caçador, achava que já cedera demais às audácias da estranha e tomou delicadamente as tiras de sua mão.
Porém, nesse mesmo instante, Éros, protegido pelas árvores, sem saber que sua mãe por ali se encontrava, disparou uma flecha certeira no coração de Adônis, e em seguida voltou a brincar. O caçador atingido percebeu, então, que estava diante da mais bela das deusas. E emendou:
— Mortais inclinam-se diante dos deuses, e não o contrário.
— Por que tem de ser sempre assim? Deixe-me reverenciar também a você.
Adônis já ouvia falar que Ares(Ἄρης), o implacável deus grego da guerra, amava uma belíssima deusa, Afrodite, e sentia-se extremamente ofendido pelo flagrante que Hefesto(Ἥφαιστος) havia-lhe aprontado. E reconheceu-a. Mal sabia ele que Áres já o conhecia.
O efeito da seta de Éros começava a fazer sentir-se, porém, erguendo-a do chão, suavemente, Adônis, com uma repentina visão, teve tempo para pensar:
— Não pretendo passar a eternidade amarrado a uma roda giratória de moinho, ou ser torturado nas profundezas do Hades, pelo atrevimento de cortejar uma deusa.
Adônis conhecia as sagas dos deuses gregos, por isso sabia de seu limite, e quis dizer algo, mas um beijo de Afrodite apagou todas suas palavras e borrou todos os seus pensamentos. Sentiram uma ardente e irresistível atração um pelo outro. Viveram dias e noites ininterruptos de doce amor, e já sabiam que não conseguiriam mais separar-se. Passavam o tempo todo juntos. Apreciavam os passeios por entre as árvores da floresta das alturas da montanha e os banhos de mar nos dias em que o calor abrasava as praias do litoral fenício.
A partir de então a deusa passou a descer todos os dias de sua morada celestial para trocar carícias e beijos com o belo amante. E, aninhada em seus braços, prometia:
— Vou fazer de você um deus...
Feliz e apaixonada, Afrodite abandonou de vez o monte Olimpo, a morada dos deuses , e desceu para habitar o mundo dos mortais, em país estranho entre deuses estranhos, assim decidida. Foi morar com Adônis numa aconchegante casinha de pedra em meio à floresta.
No entanto, Afrodite havia deixado no Olimpo seu amante Ares. O Deus da Guerra era demasiadamente ciumento e perigoso. Principalmente depois de perceber o que estava acontecendo entre Adônis e Afrodite, foi tomado por um ciúme desesperado. E, sem saber muito bem o que fazer, evitando demonstrar o que sentia ao irmão Hefesto, decidiu confidenciar com o senhor do Olimpo, que levava a fama de infiel, mais do que ninguém:
— Esse rapaz vai pagar caro por sua ousadia...
— Se quer vingança, pese bem sua decisão, Ares...
— O belo jovem gosta de se apaixonar, não é mesmo? Pois vou lhe fazer a vontade e estimular nele uma outra ilimitada e incontrolável paixão...
— Mais uma vez, Ares, eu o aviso: pense antes de qualquer ação. Afrodite pode abandoná-lo para sempre... Não se arrisque a perdê-la...
Zeus(Ζεύς) dizia essas coisas, mas, no fundo, como era o sábio dos sábios, compreendia o alcance de suas próprias palavras. Pedir a Ares para pensar antes de decidir? Dizer ao rei da guerra, a quem a luta era o impulso que o movia, para evitar o risco? Zeus, mais do que ninguém, sabia que não podia fazer nada para controlar paixões, viessem de onde quer que viessem. O próprio Zeus tinha dificuldades para controlar seus impulsos, sempre atraído por fogosas Ninfas ou por sedutoras mortais...
Ares, então, bradou com força, para que todos os deuses do Olimpo pudessem ouvir o que dizia com o rosto ardendo, incendiado pelo ciúme — isso porque sabia que Hefesto não se encontrava no Olimpo, naquele momento.
— Adônis, insolente filho de uma árvore! Eu o condeno, a partir de hoje, a dividir o amor de Afrodite com o amor, não menos intenso, pela caça e por seus perigos!
Adônis transformou-se, com o tempo, num homem forte, alto, sempre muito ativo, com energia de sobra. Seu rosto era tão belo que parecia ter sido esculpido, possuindo testa, olhos, nariz e queixo absolutamente perfeitos. Seus cabelos loiros lhe escorriam pelos ombros firmes.
Caçar, no fundo, não deixava de estar entre as coisas que ele mais apreciava fazer. Porém, submetido inevitavelmente à influência maligna e vingativa do deus Ares, passou a ser um caçador obstinado. Não era o mesmo Adônis de antes. Ficou irreconhecível em seu novo comportamento. À sua passagem, os habitantes da região comentavam entre si a brusca mudança que havia sofrido:
— Quem olha para ele pode até pensar que caçar animais é a única coisa que existe para ser feita nesta vida... — Comentavam as apaixonadas
Os anciãos assim diziam:
— Ele agora vive unicamente voltado para esse objetivo. Nem se alimenta mais direito, e mal dorme à noite, porque todas as horas são horas boas para caçar...
— Pobre rapaz, vai definhar se continuar dedicando todo seu tempo à caça...
Afrodite acompanhava seu amado dia e noite, sob o Sol e sob as estrelas, com chuva ou céu limpo. Por isso, ela, que sempre o estava vigiando à distância, quando não podia estar presente ao seu lado, foi a primeira a notar a repentina transformação sofrida por Adônis.
Agora ele enfrentava, de peito aberto e olhar frio, os perigos mais terríveis, sem qualquer sombra de hesitação. Coisas que antes Adônis procurava evitar a todo custo começaram então a ser corriqueiras: ele cruzava águas profundas e geladas a nado, atrás de pegadas de ursos; escalava torres imensas de rocha escorregadia perseguindo águias; passava longas noites em vigília, espreitando as trilhas e os esconderijos dos lobos da montanha. Afrodite o aconselhava:
— Meu querido, não deve queimar sua força e sua juventude entregando-se cegamente a isso. Tome muito cuidado. Os perigos desta terra nem sempre se mostram com clareza diante de nossos olhos.
A deusa mal podia imaginar nesse instante o quanto de verdade e de profecia continham essas suas doces palavras. De fato, perigos invisíveis rondavam Adônis, embora não o visando como caçador, e sim como uma atraente presa.
Acontece que a irresistível beleza de Adônis havia também despertado a atenção de outra deusa: Perséfone(Περσεφόνη), a rainha do mundo subterrâneo. Dona de uma beleza melancólica e misteriosa, soberana do mundo infernal que apenas se revelava aos olhos dos mortais quando eles atravessavam o Estige(Στύξ), que com suas águas caudalosas separava os vivos do mundo dos mortos, ao qual eram levados, no fim de seus dias.
Um dia, durante um passeio pela montanha, fora dos limites de seu reino, já que houvera chegado a época em que lhe fora permitido afastar-se, Perséfone viu Adônis em companhia de Afrodite. Ambos riam e dançavam por entre as árvores, felizes. De repente, Afrodite disse:
— Querido Adônis, quero que me prometa uma coisa...
— O que quiser. Peça, e eu prometerei.
— Prometa que vai parar de correr atrás de animais perigosos, de uma vez por todas. Meu coração não suporta tamanha carga...
E, deitando a cabeça sobre o colo da deusa, disse-lhe:
— Está prometido, Afrodite.
Enquanto isso, Eros, sempre imprevisível, e sempre pronto para divertir-se com suas próprias traquinagens, estava escondido entre as pedras, abrigado à sombra de um cedro portentoso.
Perséfone olhava o feliz casal e não percebia que era espreitada por Eros. Este, instintivamente, desferiu uma certeira flechada. A pontada fez-se sentir no mesmo instante no peito de Perséfone: ela se apaixonou sem remédio, à primeira vista. Adônis não a vira, mas ela prometeu a si mesma, decidida:
— Adônis, belo e gentil Adônis... Um dia você será meu, mesmo que eu me veja obrigada a dividir seu amor com Afrodite...
E, depois de permanecer por alguns instantes pensativa, observando o casal que se divertia à distância, ela acrescentou, continuando a conversar consigo mesma:
— E você, deusa do amor e da beleza, aguarde o que virá. E aproveite bem esses maravilhosos momentos, enquanto puder...
Atrás de um sorriso sombrio e fascinante, os dentes de Perséfone rangiam enquanto ela retornava a sua morada, no Mundo dos Mortos. Não podia demorar-se por muito mais tempo em seu passeio naquela região do mundo superior, já que seu marido, Hades(Άδης), não permitia, exceto na época prevista para o seu retorno para a casa de sua mãe, Deméter(Δήμητρα). Perséfone, na verdade, não se preocupava muito com seu marido, e não vacilava quando se deparava com alguma ocasião que lhe permitisse engendrar qualquer tipo de vingança, e pensava:
"Como esquecer que, antes de ser meu marido, ele foi meu sequestrador? Como apagar da memória aquele fatídico dia em que eu, ainda uma menina sonhadora, vi Hades surgir em seu resplandecente carro dourado puxado por dois cavalos negros, raptando-me para viver com ele nas entranhas da Terra para todo o sempre?"
Adônis, descumprindo a promessa, continuava intensamente obcecado pela arte da caça. A deusa Afrodite apenas tentava aconselhá-lo. Ela já havia compreendido ser impossível fazê-lo mudar de ideia, percebendo que só podia limitar-se a avisá-lo para que tomasse muito cuidado, pois estava apreensiva e preocupada:
— Você poderia caçar corças, lebres, cabras selvagens... Querido, ouça-me. Seja bravo com os tímidos. A coragem contra os corajosos não é segura. Evite se expor ao perigo e ameaçar minha felicidade. Não ataque os animais que a Natureza armou. Não aprecio sua glória ao ponto de consentir que a conquiste expondo-se assim. Sua juventude e a beleza que me encanta não enternecerão os corações dos leões e dos rudes javalis. Pense em suas terríveis garras e em sua força prodigiosa! Odeio toda a raça deles.
Mas a paixão estimulada pelos poderes do deus Ares era mais forte. Adônis sentia-se atraído pela caça mais perigosa e difícil: pelos lobos, pelos ursos, pelos pumas que infestavam as montanhas e florestas da Fenícia e da Síria.
Numa bela manhã, que anunciava a chegada do outono, as primeiras folhas das árvores caíam e o vento gelado já ensaiava suas primeiras rajadas, Adônis e Afrodite descansavam à beira de um regato de águas azuis. Haviam passado a manhã despreocupados, compartilhando agradáveis momentos entre banhos de cascata e brincadeiras dentro d’água com saltitantes peixinhos.
Ares, que tudo acompanhava das alturas do Olimpo, pressagiava um dia cheio de problemas, entre gargalhadas:
— Vamos caçar! Vamos caçar, estúpido filho de uma árvore! Vamos caçar!
Afrodite adormecera, e Adônis estava prestes a acompanhá-la no doce sono quando ouviu o ganido de seus cães, chamando-lhe a atenção. Adônis levantou-se e foi averiguar, quando notou um vulto agitando a espessa folhagem que os circundava. E sussurrou, preocupando-se em não elevar o tom da voz para evitar que Afrodite despertasse:
— Quem está aí?
Movido mais que tudo por seu instinto, e esquecido de ter prometido a Afrodite que evitaria caçadas perigosas, ele se ergueu com cuidado. Apanhou seu arco dourado, e também um punhado de flechas. Caminhou um pouco e voltou a perguntar, agora com mais força na voz:
— Quem está se escondendo aí? Por que não aparece?
Medindo os próprios movimentos, Adônis procurava distinguir aquilo que tanto podia ser uma pessoa como um animal. Apenas lhe era possível enxergar uma inquieta massa escura, protegida pela vegetação. Seria um ladrão? Um urso? Uma pantera? Ou seria um ente monstruoso vindo dos Infernos?
Nada se ouvia, nem mesmo os movimentos naturais do vento e da água. Até que, subitamente, o vulto passou a deslocar-se com rapidez. Adônis, correndo até o canil, libertou os seus animais e decidiu persegui-lo com longas e lentas passadas, afastando-se assim, cada vez mais, do local onde Afrodite continuava mergulhada no mais profundo sono. Pela terceira vez, Adônis perguntou:
— Quem está aí? Por que não pára de fugir e se esconder? Apareça!
De repente, ecoou pela mata um grunhido pavoroso. Um som que Adônis conhecia muito bem, porque era bastante familiar a todos os caçadores experientes do país. Adônis soltou os cães, que saíram velozmente em perseguição da caça. O caçador saiu cambaleante, tentando acompanhar os seus cães, até que chegou ao local onde eles cercavam um possível esconderijo.
Um ruído surdo escapou do interior da toca: o maior de seus cães havia descoberto uma entrada lateral e entrado por ela, o que obrigaria a fera a sair pela entrada principal, guarnecida pelos demais cães.
Ele procurou preparar rapidamente seu arco, e logo vislumbrou o corpo de um gigantesco javali negro. Viu, em primeiro lugar, as presas afiadas refletindo ao Sol. O reflexo teve o efeito de um relâmpago: foi o suficiente para fazer com que o tiro de Adônis se perdesse. A flecha rasgou os ares e foi perder-se em algum lugar. Os cães afastaram-se. E Adônis pôde ver o animal por inteiro, que surgia furiosamente com seus olhos vermelhos. De um único salto, o javali, com uma agilidade fenomenal, partiu veloz na direção do caçador. Adônis só teve tempo de dizer uma única palavra, enquanto procurava ajustar uma segunda flecha ao arco:
— Demônio!
E a fera saltou sobre Adônis, num só golpe, que não gritou, mas caiu em silêncio. As presas, rígidas como uma lança, enterraram-se no fundo de seu peito, tão fundo, que o javali ainda debateu-se por alguns instantes antes de se desvencilhar e desaparecer, levando atrás de si os cães enfurecidos.
No exato momento em que a tragédia se desvencilhava, Afrodite acordou num sobressalto e levantou-se mais do que depressa. Ela não havia percebido qualquer ruído estranho, mas sentia em seu peito oprimido que deveria estar acontecendo alguma coisa de ruim. E não demorou a descobrir. Notando a ausência inexplicável de Adônis, saiu gritando, atordoada, sem saber qual direção tomar:
— Adônis! Adônis! Meu querido!
Após muitas e desorientadas corridas de um lugar para outro, Afrodite, há muito esquecida de ser uma deusa, finalmente conseguiu avistar Adônis: lá estava em um pequeno desfiladeiro ao lado do regato de águas azuis, pouco abaixo do local onde eles descansavam momentos antes. Ele estava encostado numa árvore, reclinando o corpo ferido.
— Adônis, meu amor, o que houve?
Ele estava com o ventre todo manchado de sangue, e, num último esforço, balbuciou, enquanto recostava a cabeça sobre o ombro de sua amada, que o amparava:
— É o meu fim...
Afrodite conseguiu chegar a tempo de ver o último olhar e sentir o derradeiro suspiro de seu amado:
— Adônis! Adônis! Oh, maldição!
Afrodite, desesperada ao ver seu amante ser dilacerado pelas presas do animal, correu para salvá-lo. Um espinho feriu seu pé e o sangue que jorrou tingiu de vermelho as rosas, que até então eram brancas. Enlouquecida de dor, rasgou seu véu e procurou aflita interromper o fluxo de sangue que jorrava daquele peito já sem vida. Não havia mais nada a ser feito.
Afrodite voltou os olhos para o Céu, buscando acusar as Moiras(Μοῖραι), que cortavam o fio de vida de seu amado:
— Seu ato, porém, constituiu um triunfo parcial. A memória de meu sofrimento perdurará, e o espetáculo da morte de Adônis e de suas lamentações será anualmente renovado. Seu sangue será mudado numa flor; este consolo ninguém pode negar-me!
O sangue de Adônis banhava a terra. E Afrodite espalhou néctar sobre ele, levantando bolhas do solo. Ali, naquele mesmo local, onde ele foi enterrado, cresceriam, meses depois, as anêmonas, as primeiras flores da primavera, de vida curta, porém. E assim a anêmona passou a brotar e enfeitar os meses da primavera. Depois morria e se recolhia às entranhas da terra.
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