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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Capítulo 42: CORE ACEITA SEU DESTINO, SURGE A RAINHA PERSÉFONE

Perséfone(Περσεφόνη). Por Genzoman.

Deméter(Δήμητρα), aflita pela perda da filha, já não se importava mais. Seus olhos permaneciam distantes e vazios e se iluminavam somente à visão das crianças humanas. Todas lhe lembravam a sua filha roubada. E apesar de seu jeito vencido, pois havia envelhecido em poucas semanas, parecia uma camponesa dobrada pelos duros trabalhos. As crianças que via, inesperadamente, aproximavam-se e vinham brincar ao seu lado, e as menores lhe saltavam no colo e perguntavam seu nome.



E tal era ainda o seu dom de abençoar as sementes e dar vida ao solo que, quando as crianças corriam para Deméter, e brincavam ao seu lado, viam-se nos arbustos vizinhos flores desabrochando como por encanto.

E era assim que os dias passavam por Deméter, procurando sem achar, caminhando em vão, mas fazendo desabrochar as flores e sorrisos por onde passava, no entanto ao se distanciarem logo a dor em seu coração era novamente relembrada e a tristeza a sua volta voltava a invadir o ambiente.

Deméter exclamou, olhando o Sol que brilhava:

— E agora, aconteça o que acontecer, eu vou recuperar minha filha!

Estava disposta a tudo. Encontraria o caminho do reino de Hades(Άδης). Enfrentaria, se precisasse e quando a encontrasse, a fúria de Cérbero(Κέρβερος) e salvaria Core(Κόρη).

— Os homens e os deuses têm que me ajudar! Do contrário, não haverá mais alegria nem para os homens nem para os deuses!

E, naquela disposição desesperada de luta, Deméter lembrou-se de que dependia dela o destino das sementes que davam aos homens as flores e os frutos, usufruídos também pelos deuses.

Lembrou-se de que dependiam dela a firmeza dos ramos e o verde das folhas. E as ervas humildes. E as árvores frondosas. E a relva e os arbustos que alimentavam os rebanhos. E as hortaliças e os grãos e as espigas que alimentavam os homens.

E, lembrando tudo aquilo, Deméter decidiu:

— Não fecundarei mais as sementes, não darei mais alento às árvores, deixarei morrer as flores ao desabrocharem, não haverá mais frutos sobre a Terra enquanto não recuperar minha filha.

Assim pensou, assim falou, assim resolveu. E a partir daquele instante a relva mais rasteira e as árvores mais altas, as pequenas plantas de vida curta, que davam alimento aos homens e árvores centenárias que eram, o deslumbramento de seguidas gerações, tudo começou a fenecer e murchar.

A agonia de Deméter e seu afastamento do mundo provocou uma seca terrível, que se espalhou pela Terra. Nada mais vivia, nada mais germinava. Um vento frio soprava dia e noite, desnudando as árvores. Triptólemo(Τριπτόλεμος), que já havia partido pelo mundo para ensinar o cultivo do trigo, não podia iniciar sua missão, pois as preciosas sementes iriam morrer inevitavelmente na terra ressequida.

Não havia mais flores no campo. Os homens mergulhavam as mãos calosas no solo onde havia antes raízes e tubérculos comestíveis e nem embaixo da terra nem nos ramos mais altos encontravam qualquer alimento.

E como as ovelhas e as cabras, as galinhas e as outras aves, os jumentos, os cavalos e os bois também raramente encontravam o que comer, neles o homem encontrava menos comida para si e para seus filhos.

Muitos a conheciam e não desconheciam o seu poder. E poderosos senhores de terras e humildes lavradores assalariados, quando a surpreendiam, caíam aos seus pés e lhe pediam socorro.

— Ajuda-nos, ó deusa, ou morreremos de fome!

— Eu tenho uma filha, de nome Core, roubada pelo terrível senhor dos Infernos. Eu a quero de volta. Ou os homens ou os deuses, alguém tem que devolver minha filha. Do contrário, os homens acabarão sem comida e os deuses sem adoradores.

E resumindo a sua resolução:

— O primeiro verde que vai haver sobre a Terra, de hoje em diante, será o da relva do caminho de volta que vai ser percorrido por minha filha...

No Olimpo, Gaia(Γαῖα), aflita, procurou Zeus(Ζεύς).

— Zeus, como pode deixar que isto aconteça? Fale com ela, convença Deméter a voltar para o Olimpo. Os homens e os animais vão morrer todos, se a seca continuar por mais alguns dias.

Assim, Zeus fez Hera(Ἥρα) andar sua mensageira Iris(Ἶρις) descer pelo seu arco com uma mensagem para Deméter.

— “Por favor, minha querida irmã, seja sensata e deixe a vegetação crescer de novo, pelo bem dos mortais que tanto ama...”

Como Deméter não dera a menor atenção a seu pedido, Zeus enviou Hermes(Ἑρμής) com outro recado para Deméter. Deveria retornar imediatamente ao Olimpo e retomar suas atividades. Mas ela sacudiu a cabeça numa obstinada negativa.

— Hermes, — disse ela — diga a Zeus que só retornarei quando minha filha voltar para mim. E nada me fará mudar de ideia. Meu coração morre aos poucos e, junto com ele, morrerá também o mundo...

Zeus mandou então Poseidon(Ποσειδῶν), Hestia(Ἑστία) e a própria Hera entregarem-lhe presentes maravilhosos, mas Deméter, gemendo de angústia, disse:

— Levem tudo embora. Não farei nada por nenhum de vocês enquanto minha filha não voltar para casa, para mim!!

A situação ficou tão séria, a fome se alastrava, o gado desesperado definhava. Zeus, então, pediu que Deméter fosse visitá-lo Olimpo. Mas ela recusou. Ao invés, de volta à Trinácria, começou a lançar a culpa sobre a Terra inocente:

— Ingrato solo, que tornei fértil e cobri de ervas e grãos nutritivos, não mais gozarás de meus favores!

O gado morria, o arado quebrava-se no sulco, as sementes não germinavam. Por isso, ouvindo os insultos de Deméter, a ninfa Aretusa(Ἀρέθουσα) apareceu e disse-lhe:

— Não culpes a Terra, deusa. Ela se abriu de má vontade para dar passagem à sua filha. Esta não é minha terra natal; venho da Ápia. Era uma ninfa dos bosques e comprazia-me na caça. Exaltavam minha beleza, mas eu não cuidava disso, e antes me vangloriava de minhas proezas venatórias. Certo dia, estava voltando do bosque, aquecida pelo exercício, quando vi um regato que corria sem ruído, tão claro que podiam contar-se as pedrinhas do fundo. Os salgueiros o sombreavam e as margens, cobertas de relva, desciam até a água, numa rampa suave. Aproximei-me, toquei a água com o pé. Entrei até ficar com água pelo joelho e, não contente com isto, deixei minhas vestes nos salgueiros e entrei no rio.

Por um momento, Deméter retornou retornou à realidade, trazida pelas palavras de Aretusa que continuou sua narrativa.

— Enquanto lá estava, ouvi um murmúrio indistinto, vindo do fundo, e apressei-me em fugir para a margem próxima. Era Alfeus(Ἀλφειός), o deus daquele regato, e pôs-se a me perseguir. Não era mais rápido do que eu, mas era mais forte e insistente, e alcançou-me quando minhas forças fraquejaram. Gritei pedindo ajuda, e logo a deusa Ártemis(Ἄρτεμις) me atendeu e envolveu-me numa nuvem. O deus-rio procurou-me, ora aqui, ora ali, e duas vezes aproximou-se de mim sem me ver. Eu tremia, como um cordeiro cercado pelo lobo. Um suor frio cobriu-me, meus cabelos caíram como correntes de água e onde estavam meus pés formou-se uma lagoa.  Em resumo: em menos tempo do que levo para contar, tornei-me uma fonte. E, sob essa forma, fui reconhecida por Alfeus e o mesmo tentou misturar sua corrente com a minha. Ártemis abriu o solo e eu, tentando escapar à perseguição, mergulhei na fenda e, através das entranhas da Terra, cheguei até aqui. Ao passar pelas camadas inferiores da Terra, e foi lá que vi sua Core. Ela estava triste, mas já não refletia susto em sua face. Seu aspecto era de uma rainha: a rainha do Érebos; a poderosa esposa do monarca Hades.

— Minha filha rainha de Hades? Não vou permitir! E por isso vou até o Olimpo falar com meu irmão Zeus.

E assim, graças à ninfa Aretusa, que Deméter decidiu atender ao pedido de Zeus e foi até a corte celestial.

— Minha irmã, por que insistes em...

— Na verdade, Zeus, eu só estou aqui porque preciso da sua ajuda. Quero que obrigues seu irmão Hades a me devolver minha filha, ou seja, nossa filha! — vociferou Deméter.

Zeus, olhando para todos os lados, pediu para Deméter baixar o tom de voz, como se temesse que alguém os ouvisse.

— Deméter, minha querida, Hades é senhor em seus domínios... você sabe... e também é seu irmão.

— Ele que vá para o Inferno!

— Ele já está lá, querida...

Deméter, olhando-o atravessado, não estava para gracejos.

— Não tenho tempo nem ânimo de rir, Zeus!

— Então volte lá para baixo, que é seu lugar, e coloca em ordem outra vez a Terra, da qual você tem se descuidado há meses.

— Não, ela vai continuar assim, sem brotar mais um pé de couve sequer, enquanto eu não tiver minha filha de volta!

O grande Zeus, ao perceber que sua esposa Hera já se aproximava para ver o que estava acontecendo, resolveu contemporizar, pois sabia que duas mulheres iradas não era um bom negócio.

— Está bem, está bem, façamos então assim: sua filha, ah! perdão, nossa filha poderá retornar para a Terra, mas terei que primeiro mandar Hermes falar com Hades, que certamente irá impor alguma condição. Por ora, desça para a Terra e espera.

Deméter não tinha outra alternativa senão aguardar a decisão de Hades, mas pensava seriamente em ir buscá-la pessoalmente. Então, os homens e os deuses resolveram convocar o mensageiro Hermes. Ele deveria entender-se pessoalmente com Hades e libertar Core, pois era ele o único entre os Olímpicos que entrava livremente nos Infernos. Neste momento, doce água perfumada caiu como chuva. Deméter percebeu, neste sinal, que Zeus estaria do seu lado. E conteve-se a esperar. Retirou-se para o seu templo em Elêusis.

Naquele meio tempo, uma menina tinha vivido horas, dias e meses de maior aflição, num estranho palácio onde não entrava a luz do Sol e onde tudo era riqueza e esplendor, mas onde a alegria não tinha morada.

Era Core.

Passou todo aquele tempo sem provar qualquer alimento. Por mais que Hádes convocasse os melhores cozinheiros, não conseguia vencer sua resistência passiva. Era a sua maneira de protestar contra o seqüestro que havia sofrido. 

Ela possuía um dom inexplicável e misterioso. Algo de sobrenatural a preservava. Porque de aparência continuava a mesma, sempre bela, bem disposta e natural. Havia suspeitas que ela comia às escondidas e apenas fingia não comer para não dar aquele gosto de satisfação ao rei Hádes. Ou nutria-se de esperança. Chegavam a deixar frutas, doces e toda sorte de guloseimas em seu quarto, à espera de que fraquejasse. Mas quando iam ver, a menina não havia cedido. E aquilo preocupava Hádes. Porque só havia um meio seguro de retê-la para sempre em seus domínios: ela precisaria comer os seus manjares de poderes mágicos, tornando-se um de seus habitantes.

— Morrer ela não morre, ainda que não coma. Ela tem uma natureza especial. Não é uma mortal. Mas nunca estarei garantindo contra a sua fuga, mais cedo ou mais tarde, por esta ou por aquela maneira, se ela não comer. É lei eterna que ninguém pode mudar.

Apesar disso, Core não vivia inteiramente infeliz no palácio.

Certamente, sofria de saudade. Certamente, pensava dia e noite em voltar para os queridos braços maternos. Jamais se perdoava haver desobedecido aos conselhos da mãe. E queria e pensava em libertar-se. Mas havia tanta coisa bonita nos domínios de Hades que, como criança que ainda era, sempre achava um meio de se distrair.

Entre os dotes da pequena havia um vago brilho solar que irradiava. E, ao penetrar num lugar escuro, sem janelas, em que tudo era ouro, brilhantes e pérolas de uma austera tristeza, todas as peças se iluminavam pelo menos a seus olhos e as flores de ouro frio ganhavam perfume e novas cores e uma vida que palpitava enquanto ela estivesse presente.

E graças àquele dom e fascinados pela sua presença, os antigos e soturnos moradores do palácio e o próprio Hades a seguiam, para partilhar da irradiação de alegria e do toque de beleza humana ou divina que ela a tudo comunicava.

— Ah, eu só queria que ficasse para sempre comigo, mas por sua vontade, Core. — Indagava o imperador do submundo.

— Por vontade minha eu nuca ficarei.

— Eu amo a tua alegria.

— Minha alegria não existe. Existe apenas a minha resignação e a minha esperança...

— Eu tudo farei para dá-la uma alegria real, parecida com a alegria que transmite. Peça-me o que quiser...

— Deixe-me sair. Deixe-me voltar para minha mãe. E quando eu reconquistar a alegria de estar naqueles braços amados terei um pensamento alegre de gratidão para com o senhor.

Mas aquela solução não agradava, de maneira alguma, ao senhor das minas e das riquezas que ficavam nas profundezas da Terra. E, vendo que ela continuava a recusar todo e qualquer alimento que lhe oferecia, ele e seus artistas cozinheiros continuavam a inventar maravilhas. E assim o tempo passou. 

— É inútil, Hades. Nunca levarei aos lábios qualquer iguaria que te pertença. Eu não tenho apetite para coisa alguma, a não ser por um pouco de pão que minha mãe preparasse ou por uma frutinha qualquer dos pomares e dos sítios fecundados e abençoados pelas mãos de Deméter minha mãe.

Foi então que Hades teve uma ideia que já lhe devia ter ocorrido há mais tempo. Em vez de encomendar a seus cozinheiros os pratos mais sutis, para seduzi-la, mandaria seus mensageiros à Terra, para colher os frutos das árvores de Deméter e oferecê-los à teimosa jovem. Esses, ela aceitaria... E os comeria... E, portanto, segundo a eterna lei que presidia os seus destinos, jamais sairia de seu reino.

Os mensageiros de Hades partiram para a superfície da Terra. Só que chegaram tarde, depois que Deméter resolvera secar as árvores e esterilizar as plantas...

Nem os servos de Hades, que haviam subido à Terra à procura dos frutos e dos alimentos de Deméter, nem Core, que estava a contragosto resignada à sua prisão naquele palácio, mas não chegava a odiar o rei, afinal tão carinhoso com ela, nem eles nem ela, nem ninguém, sabiam que o alado Hermes havia astuciosamente penetrado no palácio com a finalidade de ter uma conversa com Hades.

Hermes, graças ao seu poder de flutuar, driblava alegremente as três cabeças ferozes de Cérberos. O triste cão sombrio e feroz ficara imóvel sobre as quatro patas fincadas no chão, sem poder despegar-se, porque cada cabeça dava, ao mesmo tempo que as outras, seu bote mortal, querendo abocanhar Hermes, que, naquele momento, era invasor. E quando Hades menos esperava, tinha diante dele e do seu trono, a figura sagaz, astuciosa, maliciosa e matreira de Hermes, mensageiro dos deuses e, naquele momento, esperança dos homens.

Hades, e Core davam seu passeio habitual pelo Mundo Inferior, quando Hermes chegou com um recado de Zeus.

—  Hades , deus do Mundo Inferior! Deméter enlouqueceu! Ateia fogo na Terra e ameaça os poderosos descendentes de Cronos. Ela quer sua Core consigo. por este motivo Zeus lhe envia uma mensagem, por meu intermédio. Pede ele, o senhor do Olimpo, que deixe Core voltar à companhia de sua mãe Deméter pois Zeus crê que ela está certa na vontade que expressa. É o que ordena o senhor do Olimpo, caso contrário estaremos todos arruinados!

Hades, de cabelos negros, viu naquelas palavras do emissário decisão para se cumprir. Contudo, apaixonado, recusou ceder à ordem do irmão seu soberano e soltou uma gargalhada.

— Imagem só! Terá Zeus enlouquecido? O que o faz pensar que cederia a um pedido desta natureza?

— Apenas transmito o recado,  Hades. Não cabe a mim julgar os pensamentos de Zeus.

Hades pensou, franziu a testa e cerrou os olhos negros. Depois falou:

— Pois diga a Zeus que jamais consentirei na partida de Core.

Hermes já ia alçando vôo, quando foi detido pelo toque suave dos dedos de Core em seu braço.

— Um momento, Hermes! Deixe-me falar com meu esposo. — E, virando-se para  Hades. — Peço-lhe, senhor do mundo inferior, que me permita voltar à minha mãe. Ela sofre e seu sofrimento condenará o mundo a uma destruição inevitável. Além do mais, Zeus lhe fez um pedido e não acho sábio de sua parte provocar a ira do supremo senhor do Olimpo.

Hades pensou um pouco e Core retirou-se para os seus aposentos. Nesse meio tempo, já haviam regressado, na maior desilusão, os servidores enviados à Terra. Tinham visto só desolação, só árvores mortas, só homens famintos, só rebanhos gemendo nos campos, nem flores nem frutos. E apenas encontraram, numa árvore já sem folhas, uma romã, a última romã emurchecida, rachada e sem cor. 

Com aquela romã seca e murcha regressaram. Acabrunhados e tristes com as más notícias que traziam e com o único fruto encontrado, ainda assim o entregaram à criada encarregada de cuidar da alimentação de Core. E, numa salva de prata, a romã feia e murcha foi levada para a pequena prisioneira, que a recebeu com a alegria de quem revia afinal uma das frutas que mais amava no seu passado de liberdade.

— Agradeço o empenho com que procuraram alguma coisa que agradasse ao meu paladar. Eu não vou comer. Mas esta fruta pode ficar aqui. Não me custa nada contemplá-la, apesar de tão feia, para recordar o tempo em que eu vivia na Terra.

Afastaram-se todos. Ficou só Core, com sua triste romã.

— Que coisinha mais feia... e mais linda.

Começou a acariciar a romã. Procurou abri-la.

— Nem perfume tens...

Abriu-a.

— Que sementes mais secas!

A fome acumulada de Core, em seis meses, começou a dobrar-lhe a resistência.

— Eu não vou comer... Vou só tocá-la com a língua, para ver se ainda tem o mesmo gosto...

E levou-a aos lábios, depois de ter tentado aspirar-lhe o cheiro que não mais havia. Involuntariamente, levou o fruto à boca e, quando deu por si, cinco pequeninas sementes, sem gosto e sem graça, tinham sido arrancadas pelos dentes que há tantos meses não provavam comida.

Foi o seu grande erro.

Nesse momento, a porta abriu-se, e Hades entrava em seu quarto. Em sua companhia vinha o mensageiro Hermes, que estivera tentando convencê-lo a devolver a Deméter a pobre menina, há muito sequestrada. Ela estava para levar à boca o restante da romã, quando entraram os deuses, fazendo-a largar o fruto, sem que o rei Hades percebesse.

Hermes percebia que a razão se afastava do deus das trevas, por isso retrucou e rejeitou todo e qualquer argumento de Hades.

— A missão que me compete não será levar recado ao implacável senhor dos poderes no Olimpo. Cabe a mim sair daqui levando Core comigo. Atenta ao que te digo!


— Sou filho de Cronos, tal qual Zeus, e exijo teu respeito à minha intensa paixão por Perséfone, a mulher que eu amo e que, agora, comigo, governa a vida dos mortos! — Vociferou Hades, que completou: — Core não é mais Core, veja por si mesmo Hermes. É rainha de meu reino, e tem agora o nome de Perséfone(Περσεφόνη). Alimentou-se comigo da romã que lhe dei, daqui não podendo ir, pois outra missão lhe cabe. Com seu destino traçado, Zeus há de compreender o sentido e o porquê do que lhe tenho a dizer. 

Core, agora encontrava-se no seu leito, enquanto esta sentia-se estranhamente atordoada, como se estivesse sido drogada, Hades ao observá-la naquele estado afirmou:

— Suma daqui, mensageiro, porta-voz da intransigência, pois não há como atender o que pede seu senhor e mesmo Deméter, dura em sua teimosia, sempre trazendo tormentos para a vontade dos deuses! É esta a minha sentença!

Ambos estavam irritados e poderiam começar uma guerra. Porém, antes que a tragédia tomasse conta dos ares, das terras, dos mares e dos abismos, destruindo toda a paz reinante, levantou-se a deusa, agora sombria, e pôs-se no meio de ambos.

— Sinto ser Core, também, por amor à minha mãe, ainda que eu seja a Perséfone amada por Hades, que é meu senhor. Então, sou deusa dividida e proponho aos Imortais passar parte de minha vida, ora aqui no reino das sombras, ora em Elêusis, com Deméter.

Hades, ao ouvir tais palavras, sentiu-se derrotado, pois havia pensado que Core houvera comido a romã que lhe fora oferecida. O imperador do submundo, realmente, não havia sido mau com Core. Tudo fizera para conquistar-lhe o coração. Queria que ela ficasse para sempre em seu palácio, dando-lhe uma alegria que nunca houvera em seus domínios.

Eloqüente, Hermes complementou as palavras de Core, ou Perséfone, e convenceu-o a devolvê-la, para salvação dos homens e dos animais, que estavam condenados a morrer de fome, porque Deméter estava irredutível na sua resolução. E Hades cedeu:

— Fiz tudo para que ficasse minha amiga. Para que ficasse aqui por sua própria vontade. Infelizmente não consegui, nem sequer aceitou qualquer alimento, minha doce Core...

— Não sou sua inimiga. Apenas quero voltar para minha mãe. Não é justo?

E já ia confessar que havia comido seis sementes de romã, quando Hermes que, com seu olho vivo, tudo notara, cortou-lhe a palavra e se dirigiu a Hades:

— Fica descansado, rei Hades. Ela se lembrará sempre com saudade do seu palácio. Será sempre sua amiga. Afinal, é um rei muito bom...

— Bondade sua.— Respondeu Hades olhando com tristeza a prisioneira que iria perder e que tanto desejara transformar em dona e senhora de seu sombrio reino subterrâneo.

— Você está parecendo muito infeliz aqui, querida. Não comeu nada. Talvez seja melhor ir para casa.

E, antes que descobrisse o grande erro praticado pela menina, Hermes apressou as despedidas e, tomando-a pela mão, tratou de levá-la consigo. Hades acompanhou-os até o portal. Todos os grandes de seu reino fizeram o mesmo. Até Cérberos, cuja expressão era sempre de fúria, demonstrava tristeza, bem visível nas três cabeças.

Já ao sair, Core disse a Hermes:

— Só um minuto, Hermes. Eu queria agradecer àqueles amigos bondosos que foram até a Terra procurar frutos que me tentassem e trouxessem aquela romã...

Hermes, em voz baixa, disse-lhe:

— Fique firme.

Erguendo-a nos braços e acionando suas talares, segredo de sua velocidade, ganhou distância.

Foi então que um dos jardineiros de Hades, que se chamava Ascálafos(Ασκάλαφος), filho de Aqueronte e da ninfa Orfne, começou a gargalhar, chamando a atenção do rei, que começou a se zangar pelo seu ar de deboche. Porém, Ascálafos disse-lhe:

— O senhor disse que ela não comeu nada? Pois encontrei a romã que lhe demos faltando algumas sementes... 

Hades sorriu de satisfação, porque, com isso, entendia que Perséfone deveria retornar. Ele então disse:

— Muito bem. Que assim seja então. Permitirei, portanto, que minha esposa permaneça sete meses com sua mãe. Contudo, os outros cinco meses deverá passar em minha companhia.

Quando se sentiu longe do reino de Hades, Hermes baixou num terreno árido e seco, pousando nele a jovem que acabava de libertar. E, mal os pés de Core pousaram em terra, uma longa faixa verde se estendeu à flor do solo. A promessa de Deméter se cumpria. À medida que caminhavam, os campos floresciam e os frutos começavam a brotar, trazendo felicidade aos homens.

Perséfone que havia deixado o Hades em companhia de Hermes, foi procurar Deméter. Encontrou-a escondida no Templo, toda envolta em dor. Ao ver a filha, um sorriso iluminou seu rosto pálido. Abraçaram-se em silêncio e as lágrimas que verteram se entranharam na terra, fertilizando-a. Alegria infinita foi a de Deméter, quando esta abraçou a sua filha querida.

— Ah, minha filha, como me fizeste sofrer!

E beijando e abraçando Core, rindo e chorando de felicidade, Deméter contou-lhe que, escondida naquele templo, onde se refugiara no seu sofrimento, ouvira de repente o canto dos pássaros, há muito desaparecido, e sentira a vibração de uma festa no ar, e tendo saído para ver o que acontecia, ficara a princípio indignada ao contemplar folhas nas árvores, verde no campo.

— Eu não podia perdoar tal desobediência...! Eu havia ordenado que a terra ficasse estéril até que...

Deméter beijou a filha de novo.

— ...é que as árvores e as sementes souberam antes de mim que vinhas voltando... Elas se alegram comigo, e muito mais contigo...

E Hermes interferiu em momento inoportuno, fazendo sua felicidade ruir.

— Só há um problema: Core comeu sete sementes vermelhas de romã. Assim, ela deverá voltar para os Infernos. Terei que levá-la logo. Ainda foi sorte. Eu cheguei a tempo de evitar que ela comesse não apenas sete, mas todas as sementes daquele fruto maldito... Por sorte, Hades não percebeu.

— Se ela for, eu jamais levantarei minha mão sobre a Terra e deixarei que todos os homens e animais morram!

Do Olimpo, Gaia contemplava, feliz, o renascimento das plantas. Tudo era festa.

Deméter despediu-se dos homens para retornar à companhia dos deuses com sua filha. Antes, porém, chamou o rei Céleo e seu filho Triptólemo e ensinou a eles os ritos sagrados, que davam à terra a vitalidade suficiente para produzir. Eram os rituais de fertilidade, eram os mistérios de Eleusis.

Triptólemo seguiu pelo mundo no carro que Deméter lhe deu puxado por dragões que corriam na terra e nos ares. Difundiu a arte da agricultura e ensinou aos homens como atrelar os bois à charrua, para melhor revolverem a terra. Fundou inúmeras cidades, ensinou o preparo do pão, sempre protegido por Deméter. 

Agora que a agricultura tinha sido difundida por toda Europa e Asia Triptólemo  voltou-se para a cidade de Cítia, cujo rei era Lingo. La chegando para compartilhar seus ensinamentos com o rei, o mesmo é questionado por Lingo:

— Rapaz, aproxime-se. Conte-me viajante quem és,  de onde vens e quais os motivos de sua viagem a tão distante terra.

Triptólemo  não se abalou com os questionamentos do rei e inspirado pelo dom de Demeter começou a falar:

— A Grécia é a minha casa, Triptolemo, o meu nome. Eu não vim de navio, sobre o mar, ou a pé, sobre a terra. O ar puro se abriu para mim e minha carruagem. Trago-lhe os dons de Deméter para serem difundidos entre os seus e espalhados através dos campos, o que vai lhe render colheitas frutíferas e grãos amadurecidos.

Em seguida passou a demonstrar como efetivar o manejo da terra. Lingo demonstrou bastante interesse pelos dotes do rapaz e logo teve inveja de seus talentos. Um grande banquete foi oferecido em homenagem a Triptólemo e Deméter a Deusa da agricultura. Lingo em meio a grande festividade pronunciou:

— Que este seja um banquete memorável, ao autor de um um grande talento, recebo-o como meu convidado. Um brinde a Triptólemo.

A ceia estendeu-se noite a dentro e quando todos já estavam inebriados e sonolentos recolheram-se aos seu aposentos. Lingo acobertado pelas trevas de seu palacio adentrou ao quarto de Triptólemo. Verificando que o rapaz encontrava-se em sono profundo, sacou a espada e já ia perfurar o peito do rapaz quando em um clarão de luz Deméter aparece, sempre atenta, transformou-o num lince. 

Ao acordar Triptólemo não entende a presença da deusa em seu quarto, a mesma apenas manda que o jovem arrume suas coisas e parta em sua peregrinação para espalhar  o cultivo do trigo pelo mundo...

Oito meses se passaram e Core, agora Perséfone, jovem e feliz, já nem se lembrava do dia de seu retorno ao Mundo Inferior. Mas, no momento certo, ao contato das vibrações da lua negra, as sementes de romã que havia ingerido começaram a emitir a sinistra mensagem: "Chegou a hora de voltar ao Hades."

De algum ponto de seu interior, a mensagem subiu à sua consciência e uma estranha agitação tomou conta de Perséfone. O sorriso se apagou de seu rosto e seus olhos se pregaram num ponto qualquer do infinito. Deméter, aflita, não compreendia a súbita mudança da filha.

— Mãe, — disse enfim a moça — chegou a hora de retornar ao meu mundo interno, ao convívio de meu esposo. Não posso mais ficar. Mas voltarei dentro de quatro meses. Não fique triste, minha mãe, e aguarde meu retorno.

Perséfone partiu e Deméter se recolheu novamente a seu templo. E, por quatro meses, a terra voltou a secar, o verde sumiu e as folhas ressecadas eram levadas pelo vento num imenso turbilhão, aguardando o retorno de Perséfone, quando então tudo voltaria a florir novamente...

A barca de Caronte atracou, trazendo sua divina passageira. Hades estendeu a mão e ajudou Perséfone a descer. Abraçou-a com calor.

— Venha, minha amada, o Mundo Inferior a espera.

Perséfone sorriu e olhou em volta. Ali estava seu reinado, seu mundo escondido da luz da superfície, onde não mais lhe importava se a terra floria ou secava, se a mãe chorava ou sorria. Para ela, só existia a realidade da vida em seu mundo interior.

De fato, Core, agora Perséfone, “a que traz a destruição”, teve que voltar tão logo e inesperadamente. Deméter foi pessoalmente ao Mundo Inferior e parou às margens do Aqueronte, onde ficou um bom tempo à espera do barqueiro Caronte(Χάρων), e começou a gritar bem alto a chamá-lo. Quando o velho se aproximou para ver o que se sucedia, Deméter pôs os pés no seu lúgubre barco.

— Hei, vamos com calma! Tu não podes...

E ameaçou-a com o remo.

— Ah, posso sim! Sou Deméter, irmã de Hades, e exijo que me leves para a outra margem!

Caronte resistiu, mas não por muito tempo, já que ainda não havia conhecido a ira de uma mulher, especialmente uma mãe que queria a todo custo recuperar a sua filha. O que aconteceu exatamente com Caronte, não se sabe, mas o certo é que jamais remou com tanta pressa e decisão.

Uma vez desembarcada, foi barrada por Cérberos, o terrível cão de três cabeças que guardava o portão dos infernos. Mas ela já estava histérica, já havia perdido a doçura e os bons modos e, com um facho que levava numa das mãos desceu uma bordoada sobre as cabeças do mastim, que saiu ganindo pelo Érebos. Sem dar ouvido a nada nem a ninguém, foi avançando pelas regiões escuras, e avançou tanto que em breve tinha diante de si o seu irmão instalado em seu trono. Este, vendo surpreso a irmã, lançou-se em seus braços, num abraço longo e emocionado.

O Olimpo entrou em alvoroço. Para apaziguar Deméter, Zeus mandou Rhea(Ῥέα), sua mãe, na companhia de Hermes, argumentar com ela. Encontraram-na sozinha com Core, sua filha. Nem sombra de Hades. Deméter apenas queria saber a opinião de sua filha, e concluiu, buscando ver onde Hades havia se escondido:

— Bem, não é tão mal assim... Mas como podes ser feliz aqui, nesta escuridão?

— É que aqui eu sou rainha, minha mãe, senhora absoluta de todos estes domínios.

Deméter procurou ao redor algo que lhe impressionasse, e não encontrou, a não ser Hades, escondido atrás de uma coluna.

— Mas e esse teu marido terrível?

— Bem, ele foi um tanto intempestivo na sua maneira de se declarar para mim, reconheço. Mas sempre me tratou com muita atenção e delicadeza, como sua legítima rainha.

E as três, avó, mãe e filha finalmente fizeram um acordo:

— É... o mal está feito. Core vai ser obrigada agora, todos os anos, a passar cinco meses no palácio de Hades, um mês por cada semente de romã que comera. Mas encontro um pouco de conforto sabendo que a terei pelo resto do tempo comigo.

Hermes, que era sempre malícia e ironia, teve uma infinita piedade de Deméter. E com voz bondosa procurou confortá-la. Hades podia ser mau, mas se humanizava sempre que via Core. Era o que diziam todos os moradores do seu reino tenebroso. Ele tudo faria por vê-la feliz. E Deméter se consolaria, da ausência de sua filha, sabendo que ela criava alegria no reino de Hades, mas voltaria sempre... e jamais morreria.

— ... Desde que não caia na tolice de comer os alimentos de Hades.

— Ah, isso eu prometo, mamãe!

— Dos males, o menor.

Hermes ainda disse:

— Não é bem isso, Deméter. Sua filha, agora, vai ter um privilégio supremo. Vai ser a Esperança. Você e Hades terão a felicidade de esperar sempre pela volta de Core.

E, antes de se retirar, disse-lhe ao ouvido:


— Deméter, precisando é só chamar. Fiquei seu amigo. E adorei sua filha. Prefiro chamá-la de Core, pela eterna juventude, pois sei que jamais envelhecerá.

E Hermes retirou-se, perdendo-se nas nuvens, enquanto Rhea e Perséfone ficaram um tempo com Deméter.

Uma das primeiras atitudes após esse dia foi punir o jardineiro Ascálafos, transformando-o em uma coruja de orelhas compridas,sob tal forma ficou sob a proteção de Athena. Deméter recompensou também Triptólemo, seu discípulo, com um arado de madeira, porque havia sido o primeiro a ter dado a Deméter uma pista mais correta do paradeiro de sua filha.

Coube a Perséfone vir à luz (o ánados) com suas sementes germinando. E por toda a primavera e no tempo da colheita, devia residir na Terra, ao lado de sua mãe, a Senhora dos Trigais. Na ocasião dos plantios, Core se transferia para os Infernos (o cátodos), seu lar nas tristes horas das chuvas e nos dias de inverno.

Deméter, ao ver Core retornando a Elêusis, foi ao seu encontro, dizendo:

— Eu preciso de você para que me ajude a trazer alegria a todos os mortais!


E, juntas, seguiram os passos do trabalho e da existência dos povos na procura da fartura e no combate à fome, querendo alcançar de novo a era dourada, tempo de paz, que a deusa dera a todos e que dura maldição tirou da vida dos homens.

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