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sábado, 7 de setembro de 2013

Capítulo 47: MIRRA, A PRINCESA QUE OFENDEU AFRODITE.

Mirra(Μύρρα). Por kamikazuh.
Debruçada na beirada de pedra, Afrodite(Ἀφροδίτ), se divertia vendo os homens adornarem seu Templo, na pequena cidade encravada ao lado do grande rochedo. Sabia que Psiqué(Ψυχη) havia enviado uma mensagem ao pai através de Hermes(Ἑρμής),  advertindo-o contra o abandono em que estava o Templo da deusa do Amor.



— São mesmo uns tolos se julgam que não percebo que fazem isto porque o rei ordenou. Pensam que enganam os deuses! Isto é muito engraçado!

Seu olhar passeou pelo mundo que se espalhava aos pés do Olimpo. Viu os pastores cuidando de seus rebanhos, camponeses arando a Terra em todos os lugares por onde Triptólemo(Τριπτόλεμος) já havia passado, conduzindo seu carro atrelado por dragões. Admirou os campos floridos e as verdes pradarias sem fim.

Fazia pouco que Perséfone(Περσεφόνη), retornara mais uma vez do mundo do Hades(Άδης) e a Terra já se cobrira de viçosa vegetação.

— Gaia(Γαῖα) deve estar feliz — pensou Afrodite.

Realmente, Gaia sorria cada vez que Perséfone voltava à sua mãe. Não se conformava com as crises da depressão que assolavam Deméter(Δήμητρα), sempre que a filha voltava para a companhia do marido. Deméter, que sempre se preocupava em alimentar os homens, dando vazão, desta forma, à imensa necessidade de nutrir que era própria de sua natureza, quando se via longe de Perséfone recolhia-se a um angustiante abatimento e deixava tudo morrer à sua volta. Isto enchia de tristeza o coração de Gaia, a Terra, a Mãe.

Afrodite passeava o olhar pelas terras floridas. Olhou uma a uma todas as cidades até que sua atenção se deteve na Síria. Um cortejo atravessava a praça principal, em direção a seu Templo. Levavam rosas tão brancas que mais pareciam flocos de algodão. Afrodite sorriu, satisfeita.

— Adoro rosas. Meu Templo ficará lindo e perfumado.

À frente do cortejo ia uma moça alta e esguia, com os cabelos compridos enfeitados por uma guirlanda de flores presa a uma fita que caía displicentemente sobre a longa veste muito alva. Entraram no Templo e depositaram suas oferendas ao pé da enorme estátua da deusa do Amor.

— Curioso — pensou Afrodite — aquela moça se veste com roupas iguais às que cobrem minha estátua. E os cabelos também levam idêntica guirlanda de rosas. O que estará pretendendo aquela menina?

Viu a silhueta majestosa de Hermes(Ἑρμής), que vinha em direção ao Olimpo, trazido pelas asas de ouro de suas sandálias encantadas.

— Hermes! — chamou Afrodite — Você que vai tantas vezes ao mundo dos homens, sabe me dizer quem é a moça que está naquele Templo? — e apontou.

O mensageiro dos deuses olhou para onde ela indicava.

— É a filha do rei Cíniras(Κινύρας) — esclareceu, afinal — Dizem que ela se parece muito com você.

Afrodite fez um muxoxo e não respondeu.

— Aborrecida com a princesa, deusa? — perguntou Hermes, disfarçando um sorriso matreiro.

— Não, Hermes — respondeu ela — Não estou aborrecida... ainda. Apenas observo.

E continuou com os olhos presos à moça, enquanto Hermes se afastava, veloz como o vento.

Cíniras(Κινύρας), o gigante, tornara-se homem muito poderoso, rei de Biblos, na Fenícia. Tinha uma filha, de nome Mirra(Μύρρα). Filha única, jovem e linda princesa de cintilantes olhos cor de violeta. Todos os fenícios de Biblos sabiam que ela era a moça mais bela do país. Mas, para Mirra, isso era bem pouco. Considerava-se a mais bela das mortais e das imortais, sem nunca fazer questão de esconder sua convicção.

Um dia, depois de, mais uma vez, passar longos momentos apreciando-se ao espelho formado por um límpido lago incrustado nos jardins do palácio real, a princesa Mirra disse à sua ama Hipólita(Ιππολύτη):

— Hipólita, não é verdade que nem mesmo a própria deusa do amor e da beleza, Afrodite, possui cabelos assim tão bonitos?

A ama, timidamente, consentia, sem nada pronunciar.

— Qual mulher, viva ou morta, humana ou divina, possui um rosto tão belo quanto o meu, que parece a mais perfeita escultura já moldada?

Hipólita aprovava a seu modo, abaixando o olhar. E a princesa Mirra prosseguia:

— E olhos com esta tonalidade de violeta? E um porte assim tão esguio e vistoso? E...

A ama sorria suavemente, com os cantos dos lábios.

— Hipólita, seja entre mortais ou entre os imortais, não há mulher mais bela do que eu, não é verdade?.

Enquanto Mirra perguntava, a ama permanecia em silêncio. Uma ou outra vez ela se limitava a um leve movimento afirmativo com a cabeça grisalha. Mirra tinha o costume de repetir sempre as mesmas coisas até a exaustão — dela e de quem estivesse a escutá-la.

Assim que a princesa começava a falar quando estavam a sós, Hipólita já sabia exatamente o que iria ouvir. Ademais, tudo o que Mirra dizia de si mesma, eram aos quatro Ventos. Os deuses que — quando assim o desejavam — tudo viam e ouviam, logo ficaram sabendo da crescente e desvairada vaidade de Mirra.

Viu a princesa retirar uma rosa da oferenda ao pé de sua estátua e sair do interior do Templo para o átrito iluminado. Encostado numa das colunas de pedra, um rapaz parecia esperar por ela.

— Mirra, como você é linda! — exclamou ele. — Tão linda quanto a deusa do Amor.

O riso da princesa chegou até o Olimpo como o tilintar de cristais. Afrodite apertou o cenho e debruçou-se mais.

A moça se aproximou do rapaz lentamente, ondulando o corpo com graça.

— Você me acha mesmo parecida com Afrodite? — perguntou, acariciando com a rosa o rosto do moço. — Há quem diga que sou ainda mais bela!

O rapaz riu e puxou-a para bem perto de si.


— Não conheço a deusa — disse ele, procurando os lábios da moça com a boca aflita —, mas na certa não terá mais calor do que este que emana de seu corpo.

Mirra se esquivou com graça e leveza.


— Não seja tão audacioso! Não me toque, ou será punido. Sabe muito bem que não pode cobiçar a filha do rei, mesmo que ela lhe seja mais atraente que a própria deusa do Amor.

— Não estou mais disposta a me irritar eternamente com essa tagarela fenícia elogiando a si mesma dia após dia, noite após noite. E esses estúpidos mortais já começaram a comentar que ela de fato é a rainha da beleza!... — disse  Afrodite, que a tudo via e ouvia no Olimpo.

A irritação de Afrodite era tanta que a deusa esqueceu-se de pensar em Mirra como uma simples mortal e, portanto, como um ser de portas fechadas para a Eternidade. Imaginou, então, um terrível castigo para a pretensão da jovem princesa.

— Minha tolerância se esgotou. Você mesma pediu uma lição exemplar. Mirra, o que agora vai lhe acontecer servirá para todas as mortais presunçosas e arrogantes...

Ainda atenta à conversa dos dois, Afrodite mordeu os lábios, cheia de raiva. Zéfiros(Ζεφυρος), que passava naquele momento, agitou seus longos cabelos dourados. Afrodite ergueu os braços e chamou:

— Zéfiros, Vento do Oeste, atenda meu chamado! Traga às minhas mãos a fita dos cabelos de Mirra, princesa da Síria.

O vento partiu, rápido e leve. De longe, Afrodite viu os cabelos de Mirra esvoaçarem em torno do seu rosto bonito. A guirlanda de flores caiu ao chão e um torvelinho arrancou a longa fita que se elevou aos ares, sumiu em direção às nuvens, e foi pousar suavemente nos dedos finos da deusa. Ela enrolou a fita, guardou-a no bojo de uma flor, e partiu em direção à floresta.

— Essa moça precisa de uma lição! Há que sentir na pele o ardor de uma paixão impossível, para compreender que não se brinca com os homens em nome da deusa do Amor!

Chegou a uma caverna oculta atrás de uma densa folhagem. Há tempos descobrira aquele local e lá se escondia, sempre que precisava praticar sua magia, longe dos olhares dos outros deuses. No meio da caverna, uma pedra triangular servia de altar.

Afrodite parou em frente ao altar. Concentrou-se por alguns momentos e logo a expressão de seu rosto se modificou. Seu olhar se tornou mais profundo, como se olhasse além das coisas do mundo. Ergueu as mãos para o alto e murmurou algumas palavras estranhas. Depois acendeu um monte de ervas secas e esperou que o fumo se elevasse num rolo denso. Pegou a fita dos cabelos da princesa e segurou-a no meio da fumaça.

— Mirra... Mirra... Mirra... — murmurou, numa voz profunda — O desejo pelo amor impossível toma conta de seu corpo e a paixão se instala em seu peito. Mirra... Mirra... Mirra... O fogo do amor proibido consome suas entranhas e nele se queimará sua leviandade para com os deuses.

Com os lábios semicerrados, Afrodite começou a entoar um cântico monótono, enquanto fazia bailar a fita da princesa entre o aroma acre do fumo escuro.

— Mirra... Mirra... Mirra... Queime-se no fogo do amor proibido! — E a fita bailava, bailava. — Mirra... Mirra... Mirra... Consuma-se na paixão impossível!

E os cânticos continuaram por muito tempo, até que as ervas retorcidas e negras exalaram seus últimos vapores...

Mirra se preparava para dormir. Uma tristeza súbita roubara o riso costumeiro de seus lábios. Hipólita, sua criada de quarto, ajeitava as mantas sobre seu leito macio.

— Princesa — disse ela — está tão séria hoje. O que houve com sua alegria?

Mirra suspirou.


— Não sei, Hipólita. Sinto uma pressão estranha no peito, uma vontade tola de chorar.

— Isto me cheira a paixão — gracejou a criada, enquanto sacudia uma almofada.


— Se é paixão, Hipólita, não sei quem é o eleito do meu coração. Estou prometida a meu primo, mas nem ao menos o conheço.

Hipólita parou e pousou em sua jovem senhora um olhar penetrante.


— E o que me diz dos rapazes do Templo? Cobiçam-na com o olhar, princesa.


Ela sorriu palidamente.


— São uns tolos que só se prendem à minha beleza.


A criada ia dizer alguma coisa, mas uma pancada suave na porta não permitiu que continuasse.

— Deve ser meu pai — sussurrou Mirra. — Abra a porta, Hipólita, deixe que o rei entre.


A figura altiva e elegante do rei Cíniras surgiu na penumbra do quarto, enchendo o ambiente com uma aura poderosa e magnética.

— Ainda acordada, minha filha? Precisa repousar, ou sua saúde ficará abalada. Hoje oficiou os serviços do Templo, junto com as sacerdotisas, não foi? Deve estar exausta!

Mirra não conseguiu responder. A presença do rei emanava uma vibração forte e desconhecida. Uma pressão quente comprimiu-lhe o ventre. Cíniras não percebeu a perturbação da filha. Seu olhar curioso acompanhava os movimentos graciosos de Hipólita, que dobrava as roupas da princesa com agilidade.

— Sua nova criada de quarto, Mirra? — e, dirigindo-se à criada — De onde veio, menina?

Hipólita corou e baixou a cabeça. Mirra fez com a mão um sinal tranquilizando-a e respondeu rapidamente.

— É filha da cozinheira, senhor meu pai. Veio substituir a velha aia que adoeceu subitamente.

O rei não respondeu, mas olhou Hipólita de cima em baixo.

— Muito bem, — disse afinal — você é ainda uma criança, minha filha, e deve estar mesmo cercada por jovens. Os velhos costumam ser casmurros e aborrecidos. — Aproximou-se de Mirra e beijou sua face quente — Boa noite, meu anjo, e que seu sono seja abençoado pelos deuses.

Hipólita correu para abrir-lhe a porta. Mirra, parada no meio do quarto, parecia pregada no chão. Profundamente perturbada, viu o rei se retirar e passou de leve a mão no rosto, onde o beijo paterno deixara gravada uma impressão de fogo.

O rei voltou no dia seguinte, à mesma hora, mas encontrou a filha já deitada.

— Contente com a nova criada? — perguntou o rei, olhando em volta.

A princesa sentiu o coração saltar no peito.

— Sim, meu pai. Hipólita é uma aia bastante eficaz.

— Pensei encontrá-la ainda aqui, em seu quarto. Dispensou-a mais cedo?

— Estou muito cansada — balbuciou Mirra, sentindo novamente um calor estranho envolver seus sentidos. — Quis me deitar mais cedo.

O rei sorriu e acariciou-lhe a face com ternura.

— Faz bem, filha. Deite-se e perdoe-me se a importunei.

Ela sentiu o rosto em fogo.

— Jamais irá me importunar, meu pai. Não poderei dormir sem seu beijo de boa noite.

E quando o rei saiu, ela rolou na cama e chorou...

Quando Hipólita chegou, pela manhã, encontrou a princesa muito pálida, com os olhos vermelhos e inchados.

— Mas o que foi, princesa? — perguntou, aflita. — Não dormiu bem à noite?

Mirra recomeçou a chorar.

— Como sou infeliz, Hipólita! Confio em você e vou lhe contar o meu segredo. Mas terá que prometer que não o contará a ninguém.

A aia se agachou a seu lado e segurou suas mãos geladas.

— Minha princesa, antes a morte que trair sua confiança. Não sabe como sofro ao vê-la assim, triste e doente.

Mirra aproximou mais o rosto e disse baixinho:

— Sim, Hipólita, estou muito doente. Sofro do mal da paixão.

Os soluços não a deixaram continuar. A criada, nervosa, deixou que a moça apoiasse a cabeça em seu ombro.

— Mas, princesa, isto não é doença. Vamos, não chore! O amor é tão bonito! Sei que está prometida a seu primo, mas para tudo há um jeito. Tenho a certeza de que seu pai a ama bastante para não querer sua desgraça. Há de encontrar alguma solução.

Os soluços aumentaram. Hipólita acariciou os cabelos de Mirra e embalou-a suavemente.

— Não chore, princesa, não chore...

— Hipólita, você não entendeu... — disse a moça entre um e outro soluço — Meu coração arde de paixão por meu pai!

A criada estremeceu. Quis dizer alguma coisa, mas não encontrou as palavras certas.

— Entendeu agora, Hipólita? Minha doença é grave e incurável. Ardo de desejo por meu próprio pai! Que maldita sina a minha! Deve ser algum castigo dos deuses.

— Princesa — disse, enfim, a criada — esta paixão irá passar, com o tempo. Procure se acalmar, vista-se e vá ao jardim pegar um pouco de ar. Se o rei a vir neste estado poderá ficar preocupado. Veja como ele a ama.

— Sim, minha amiga, ele me ama muito. Sou para ele ainda a mesma criança de antes. Não percebe que já cresci.

— Ele é seu pai, princesa, e para os pais os filhos são sempre crianças. Iria morrer de desgosto se soubesse que está doente e, pior ainda, se desconfiasse do motivo de seu mal. Vamos princesa, seja forte! Estou certa que conseguirá dominar esta paixão que a consome tanto.

Mirra se levantou e Hipólita a ajudou a se vestir. No jardim, o vento fresco não conseguiu aliviar o ardor que se instalara no corpo da princesa e o sorriso não voltou a seus lábios.

Daquele dia em diante, passava suas horas esperando a noite, quando o rei invariavelmente vinha a seu quarto depositar em seu rosto o beijo de boa-noite.

Emagreceu, definhou. O rei, aflito, chamou os médicos da corte, mas nenhum deles descobriu que misterioso mal era aquele que consumia a saúde da princesa. Receitaram algumas ervas, mas Mirra continuava morrendo pelos cantos do palácio.

Uma noite, depois da visita habitual do rei, Mirra fez um sinal para que a criada se aproximasse.

— Hipólita, ajude-me! Não suporto mais! Minha resistência chegou ao fim. Tentei me desvencilhar deste amor impossível, mas não consegui. Se não ceder a ele, morro.

Hipólita arregalou os olhos.

— Ceder, princesa? Mas, como? Desculpe-me se lhe falo desta maneira, mas creio que o rei lhe daria uma boas palmadas se tentasse alguma coisa.

Uma sombra de sorriso torceu de leve os lábios de Mirra.

— Hipólita, tenho um plano, mas preciso de seu auxílio. Tenho notado que o rei a devora com os olhos, cada vez que vem aqui.

— Princesa! Eu não... — ia protestando a criada, mas foi calada por um gesto de Mirra.

— Não a estou incriminando, Hipólita. Você não tem culpa de ser bonita e desejável. Só quero que me ajude.

— Como? — perguntou a criada num sopro de voz. E curvou-se ainda mais para escutar melhor as palavras da princesa...

No dia seguinte, o rei Téias encontrou a filha mais animada. Abraçou-a carinhosamente.

— Como é bom vê-la sorrir, minha menina. Tem me deixado tão aflito!

— Meu pai, sinto vê-lo tão prostrado por minha causa. Não se preocupe, estou bem. Quero que se cuide melhor, pois um rei não se pode deixar abater.

— Sou rei, mas, antes de tudo, sou pai. A morte ainda recente de sua mãe foi muito dolorosa para mim e não posso suportar sequer a ideia de perdê-la também, minha criança.

Hipólita se levantou, segurando uma caneca fumegante. Os olhos baixos pareciam fugir de um encontro com o rei.

— Seu chá, princesa — disse ela, timidamente.

O rei Téias envolveu o corpo da criada com um olhar cobiçoso. Mirra fingiu não perceber.

— Meu pai, Hipólita tem cuidado muito bem de mim. Todas as noites, antes de se recolher, traz-me um caldo quente tão nutritivo que minha fraqueza logo desaparece e tão relaxante que adormeço imediatamente. Esta noite ela irá levar o caldo em seus aposentos, pai. Insisto para que o tome. Parece mais fraco do que eu.

O rei deu uma risada.

— Aceitarei com prazer.

Beijou a princesa, levantou-se e olhou para a criada.

— Deixarei ordens com o sentinela para que a deixe passar. Traga-me este caldo maravilhoso, pois na certa me fará bem.

Hipólita deslizou pelos corredores mal iluminados do castelo em direção ao quarto do rei. O sentinela sonolento se plantou à sua frente.

— Sou a camareira da princesa e trago um caldo para o rei.

O homem fungou e foi se sentar em seu banco, espreitando-a com o canto dos olhos. Deu um bocejo e acomodou-se melhor. A criada passou por ele e parou à porta dos aposentos reais. Bateu levemente. A voz do rei respondeu lá de dentro, mandando que entrasse.

Hipólita se viu no meio de um amplo quarto iluminado por tochas presas às paredes adornadas por peles de couro, escudos, lanças e espadas de metal encravado de pedras preciosas. As janelas, ocultas por pesadas cortinas, não deixavam passar nem um só fio de prata do luar.

No meio do aposento, uma enorme cama de madeira trabalhada deixava ver, através das colchas de pele, o alvo lençol de linho. Almofadas macias colocadas displicentemente sobre o leito e também no chão, davam ao ambiente um ar de aconchego. Hipólita descansou a tigela de caldo sobre uma mesa pequena, de madeira entalhada.

— Meu rei — disse ela, quase num sussurro — a princesa recomendou muito que tomasse o caldo ainda quente.

Mas ele não prestava atenção ao caldo. Seus olhos não se despregavam do rosto da criada. Chegou mais perto e pousou a mão enorme sobre o ombro frágil da moça.

— Hipólita, não se vá ainda, peço-lhe. Sinto-me só. Fique comigo esta noite, sim?

A criada estremeceu, sentindo no rosto o hálito quente de Téias.

— Senhor meu rei... — murmurou ela. — Quem sou eu para negar-lhe um pedido?

Ele curvou-se para beijá-la, mas ela desviou o rosto.

— Perdão, sou muito tímida e nunca permiti antes que nenhum homem me tocasse. Se pudesse ousar fazer-lhe um pedido...

O rei segurou o queixo delicado de Hipólita, fazendo com que ela erguesse o rosto.

— Diga-me o que quer e lhe será concedido.

— Gostaria que apagasse todas as tochas. Minha timidez irá então se diluir na escuridão.

O rei não respondeu, apenas dirigiu-se às tochas e apagou-as uma a uma. Ao extinguir a última, ouviu Hipólita exclamar, assustada:

— Pelos deuses! Preciso voltar ao quarto da princesa! Deixei o fogareiro aceso e ela com certeza já dorme. Voltarei dentro de minutos, meu rei, se me permitir apagá-lo, pois temo que incendeie as mantas que deixei a secar em seu calor.

— Seus cuidados com minha filha me comovem — suspirou o rei. — Vá, Hipólita, mas não se demore.

Hipólita se voltou e correu. O sentinela, profundamente adormecido, não a viu passar. Entrou no quarto de Mirra, que a esperava com impaciência.

— E, então? — perguntou a princesa, aflita.

— Tudo como esperávamos que fosse — respondeu a criada.

— O que espera, então? Dê-me suas roupas! — exclamou Mirra, enquanto arrancava as próprias vestes.

— Espero que não se arrependa, depois que for tarde demais — disse Hipólita, entregando suas roupas à Mirra...

O vulto da criada surgiu à porta do quarto do rei Cíniras. Aproximou-se lentamente. Ele estendeu a mão e buscou seu pescoço esguio, atraindo-a para si.

— Sua pele está tão fria, Hipólita. Sente-se mal?

Ela não respondeu. Apenas procurou com a boca os lábios do rei, colou seu corpo ao dele e com as mãos ágeis desatou os cordões que atavam suas vestes. O rei gemeu de prazer, ao sentir o toque dos dedos macios em sua pele. Suspendeu-a em seu braços e depositou-a gentilmente sobre o leito. E toda a realeza desapareceu na escuridão, deixando ficar somente o desejo dolorido que os corpos procuravam saciar.

E o cruel castigo determinado por Afrodite começou a cumprir-se todas as noites, prolongando-se pelas doze noites seguintes. Como uma sonâmbula, inconsciente de seus gestos, Mirra perambulou pelos aposentos de seu pai, Cíniras. Misturou-se, na escuridão da noite, às mulheres que viviam no palácio e que eram destinadas às danças, às festas, às comemorações, disponíveis sempre para o prazer dos guerreiros.

Por doze noites consecutivas, sem o conhecimento de ninguém, Mirra deitou-se no leito do próprio pai. O rei comportava-se durante todo esse tempo embriagado pelo excesso de vinho. Justamente Cíniras, conhecido por nunca beber mais do que um cálice de licor, deitou-se com sua filha como se ela fosse uma qualquer.

Ambos permaneceram unidos às escondidas durante as doze noites, convivendo como dois amantes, sob os efeitos dos fluidos vingativos de Afrodite.

Com a impressão de estar saindo aos poucos de um medonho pesadelo, a princesa reconstituía, nos dias seguintes, os fatos gravados, de forma fragmentada, porém muito clara. Ela vasculhava suas lembranças e ia compreendendo o que havia acontecido, como se reconstruisse, pedaço por pedaço, um jarro de cerâmica antes de estraçalhado.

Todos ficarem felizes com a rápida recuperação de Mirra. Melhorava com a mesma rapidez com que adoecera e os médicos já não se preocupavam mais com sua saúde, agora visivelmente restabelecida. O rei, alegre e despreocupado, via a filha curada, passeando pelos jardins do castelo durante o dia e, à noite, recebia a visita silenciosa da criada que o amava com delírio, envolta pelos véus da escuridão.

— Hipólita — sussurou ele, sentindo na pele a pressão do corpo da moça — jamais mulher alguma me deu tanto prazer. Há doze dias que nos amamos e até hoje não me deixou ver seu corpo nem ao menos uma vez.

— Não, por favor, meu rei! Tenho muita vergonha e a luz destuirá a mágica do nosso amor.

Cíniras não insistiu. Apenas atraiu-a para si e amou-a novamente.

Passou o verão, correu o outono, acabou-se o inverno e Mirra evitava já se mostrar em público, pois uma nova vida desenvolvia-se dentro dela, fazendo aumentar o tamanho de seu ventre. A primavera começava. Mirra, então, retirou-se, passando dias inteiros isolada em seus aposentos. Recusava-se a ver qualquer pessoa, a receber visitas, incluindo sua fiel ama Hipólita. Ela esperava a chegada do momento de dar à luz, como quem aguardava resignadamente o cumprimento das leis traçadas pelo Destino implacável. E batiam à porta:

— Não estou para ninguém!

Cíniras, seu pai, sem poder perceber a catástrofe que se abateria sobre sua casa, insistia:

— Estou muito preocupado com o que está acontecendo com minha querida filha!...

E nada. Mirra não abria a porta.

A maldição programada pela imaginação vingativa de Afrodite previa os acontecimentos que se precipitariam a seguir. Cíniras, que estranhava o comportamento da filha, havia passado um dos primeiros dias primaveris procurando distrair-se, saboreando uvas, morangos e peras, tocando lira com amigos no salão de festas do palácio.

À noite, o rei seria informado a respeito do que acontecia. Vozes estranhas falaram a seus ouvidos em meio às trevas de uma noite inteira:

— O filho que sua filha carrega no ventre é seu legítimo filho...

— Há um fruto nefasto no ventre de sua filha...

— Maldito seja o pai que fecunda a própria filha...

— Falta pouco para o rei ser pai e avô de uma só vez...

O rei ergueu-se lentamente, ficou de pé, imóvel, e a expressão incrédula de seu rosto foi pouco a pouco se transformando numa terrível máscara de desespero.

— Maldita! — exclamou ele — Como se atreveu a desonrar de forma tão infame o nome real?

O dia ainda não havia vencido a escuridão quando Cíniras, alucinado de tanta fúria e desconfiança, apanhou sua espada, jogou um manto às costas e saiu gritando:

— Mirra! Maldita Mirra! Filha amaldiçoada para sempre! Que a desgraça acompanhe seus passos! Onde está? Mirra!

Os gritos do rei arrepiaram a pele e gelaram os ossos de todos os que foram acordados nessa madrugada. O gigante cruzou os corredores do palácio e correu rumo aos aposentos de sua filha. Mirra, porém, momentos antes, fora alertada por sua fiel e atenta ama Hipólita:

— Suma daqui, agora, Mirra, seja qual for o motivo!

Hipólita entrou nos aposentos da princesa sem qualquer aviso e deparou-se com a menina grávida, arrancando-lhe espanto. Ficou perplexa, mas voltou a si e continuou:

— Desapareça sem demora deste palácio! Seu pai vem aí e está louco de ódio! Pelo jeito, pretende tirar-lhe a vida!

Não foi preciso insistir muito. Mirra compreendeu que não lhe restava nada mais a fazer a não ser tentar escapar dali. Começou então a correr, mas logo sentiu o outro corpo que, dentro do seu, lhe dificultava os passos. Atravessou, tropeçando e cambaleando, os amplos jardins do palácio real e penetrou num bosque próximo.

Ofegante, o rei já a tinha avistado da janela e saiu ao seu encalço, e já se aproximava com a espada em punho, cheio de ira. A cada passada dele, o chão parecia tremer, como se estivesse também amedrontado. De repente, a princesa, incapaz de continuar sustentando-se, ajoelhou-se, ergueu os braços para o Céu e gritou, entre soluços:

— Piedade, ó deuses, piedade, ó Afrodite, que a ofendi! Piedade a esta mortal vaidosa! Quero desaparecer, quero sumir, quero que a Terra me engula! Tenham ao menos pena de meu filho!

Descontrolada e sem saída, Mirra chorava. Sua voz era cortante, e ela estava com o olhar voltado para o alto, como se procurasse avistar os deuses a quem dirigia seus apelos.Mirra se encolheu toda, apavorada. O rei, entretanto, não deixou cair sobre ela o braço forte. Parou o gesto no ar e rosnou baixinho!

— Somente a morte poderá redimir seu ato torpe e indigno!

E, num movimento rápido, arrancou da bainha uma das espadas que estavam depositadas em sua cintura. Amanhecia, e o céu estava coberto de púrpura. Cíniras tinha os olhos rubros de ódio, e parecia surdo às súplicas que fazia a moça.

Ela tentou dizer alguma coisa ao pai, mas não conseguiu. O rei avançou alguns passos, segurando com força o cabo da pesada espada, usando as duas mãos. Estava já próximo da filha arrependida. Do alto Olimpo, muitos dos deuses, inquietos e curiosos, acompanhavam com atenção o desfecho.

— Não, meu pai! Não faça isso! — gritou a princesa — Pai, perdão! Eu não sabia o que estava fazendo!

Afrodite, no Olimpo, era talvez um caso isolado da mais completa e serena indiferença. Ela aguardava, sorvendo um cálice de néctar, o desenlace da perseguição. Zeus, o rei dos deuses, olhava apreensivo para ela quando bradou, controlando-se para não parecer agressivo:

— Há momentos para a fúria, mas há momentos para a compaixão dos imortais... Afrodite, vê: para essa mortal pretensiosa e fútil talvez piedade não seja mesmo a coisa mais merecida. A piedade divina, isso sim, deve ser dirigida para o fruto do ventre dessa moça infeliz...

Afrodite, despreocupada, enquanto ajeitava um pouco seus deslumbrantes cabelos, respondeu:

— Concordo, desde que o pai a degole... Depois salvamos a criança...

— Cíniras não merece esse castigo. Não merece carregar até a morte o peso de ter matado a própria filha... Vê, ele se aproxima...!

— Deuses, ajudem-me! — suplicava Mirra — Por favor, tenham pena de meu sofrimento! Ajudem-me, deuses!

Debruçada na saliência da rocha, Afrodite se divertia com a agonia de Mirra. Tão distraída estava que não notou a chegada de Hera(Ἥρα).

— O que é isso, Afrodite? — exclamou Hera, procurando com o olhar de onde vinha aquele chamado tão aflito. E sua voz forte e metálica fez com que a deusa do Amor estremecesse. — Ainda persegue aquela pobre moça? Tudo o que já lhe fez não foi suficiente?

Afrodite empinou o nariz atrevido.

— Ela ousou competir comigo em beleza! Deve ser punida!

Zeus curvou-se sobre o abismo.

— Já chega, Afrodite — disse ele. — A princesa não merece uma pena tão cruel como a morte. É sofrimento em demasia para um pai zeloso como ele sempre foi...

Afrodite permaneceu em silêncio, e Zeus, sábio e ardiloso, aproveitou o instante de fraqueza da deusa. Ouviram-se em Biblos estrondosas trovoadas, mas o céu permanecia limpo naquele amanhecer. Viram-se raios ofuscantes que estalavam no cume das montanhas. Ventos uivantes sopraram. Cíniras, então, nesse momento, quando já erguia sua espada, ficou paralisado de terror.

Diante do rei, uma cena apavorante se desenrolava. De joelhos fincados na terra e com as mãos trêmulas, Mirra começou a mudar rapidamente de cor. Seus longos cabelos ficaram rígidos como ébano. Onde antes brilhavam irresistíveis olhos cor-de-violeta, surgiram dois buracos terrosos. Os seus dedos grandes cresceram transformando-se em raízes, que penetraram na terra escura para lhe suportar o corpo, que se ia esticando e transformando no tronco de uma grande árvore. A sua pele escurecia e enrugava-se como se estivesse coberta de raízes e logo endureceu transformando em casca e toda a carne humana se transformou em árvore, continuando ela com capacidade para verter lágrimas de seiva aromatica.

A jovem princesa sentiu-se petrificada, presa ao chão, e foi essa a última coisa que sentiu em sua fútil e curta vida. De um momento para outro, ela havia se transformado numa árvore, aquela que então todos conheceriam como “mirra”, e que a partir daí sempre soltaria, através de sua casca grossa, uma resina perfumada formada pelas lágrimas da princesa.

— Pronto, Mirra — disse Zeus, afastando-se com Hera — Agora os homens jamais a incomodarão...

Cíniras permanecia ainda ali, mais envelhecido, espantado. Sem perceber, havia largado a espada ao chão. Os pastores que por ali passavam notavam, cheios de espanto, que a casca daquela árvore inchava à medida que o tempo corria. Afrodite, ainda atenta ao destino da princesa, também percebeu que o tronco da árvore se avolumava, como se algo em seu ventre crescesse a cada instante.

Cíniras diariamente ia aquele local observar o desenvolvimento daquela árvore, até que no primeiro dia do décimo mês, o tronco da árvore, sacudido pela chicotada de um raio que cegou o rei por instantes, rachou-se de alto a baixo. Apareceu, brotando de dentro dela, uma linda criança, envolta num véu azul bordado com fios de ouro, que chorava em seu interior. O rei que permanecia atordoado, já dava sinais de que com sua recuperação viria uma tentativa de liquidar de uma só vez o fruto do incesto. Ele gritou, então:

— Mirra, vou destruir sua herança!

Mal acabou de falar, e três Ninfas reluzentes, muito belas, surgiram flutuando. Elas tinham cabelos muito compridos, que pareciam espessas asas. Cíniras, outra vez assustado, ergueu a cabeça, imaginando-se sobrevoado por pássaros encantados.

Uma das Ninfas tinha cabelos negros como a Noite; os da outra eram dourados como o Sol; a última tinha os cabelos castanhos como a Terra. Velozes, elas arrebataram o recém-nascido e subiram com ele em direção às nuvens, voando para bem longe daquela terra.

O Sol subia no horizonte. Voando acima das nuvens, as Ninfas, amparando com muito cuidado e carinho a criança, cruzaram o céu sobre o imenso mar, enquanto o poderoso Poseidon(Ποσειδῶν) ainda repousava nas profundezas de seu reino. Voando suavemente, foram parar nas alturas dos montes Hermon, na Síria, como se estivessem obedecendo a uma rota previamente estabelecida. Permaneciam o tempo todo em silêncio. Porém, antes que tocassem o solo, a ninfa de cabelos negros comentou com as outras duas:

— Que criança linda! Já viram beleza semelhante?

— Verdade. E nós conseguimos chegar no momento exato. Bem que Zeus avisou que o rei Cíniras estava mesmo disposto a esquartejar a filha sem qualquer compaixão.

Assim afirmou a de cabelos dourados. E acrescentou a de cabelos castanhos:

— Mas o fim que a princesa teve não foi dos melhores... Este menino é um predestinado. Não é qualquer um que pode se vangloriar de ter escapado à fúria de uma deusa tão poderosa quanto Afrodite.

As três Ninfas conduziram o menino até uma gruta, aonde passaram a criá-lo com muito carinho e atenção. Durante alguns anos, zelosas e prestativas, elas sempre se revezariam nos cuidados, aguardando até que ele crescesse o suficiente para poder caminhar sozinho.

Depois de um tempo, quando o pequenino filho de Cíniras já começava a caminhar, as Ninfas deixaram-no com montanheses de uma pequena aldeia da região. Elas haviam se apegado muito ao menino. Por isso, evitando cenas tristes, entregaram-no aos aldeões e desapareceram para sempre.

Ali, o garoto recebeu um nome: Adônis(Άδωνις). Cresceu, cada vez mais belo, como nunca antes nenhum par de olhos mortais tivera o privilégio de ver. Foi criado entre bosques, montanhas nevadas, lagos cristalinos e riachos. Vagava livre como os animais e nadava como os peixes. Bebia a água pura das fontes e se alimentava com os mais saborosos frutos daquela terra.

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